Fernanda Gaio é uma mulher de 69 anos a passar graves carências financeiras. Sobrevive sozinha com cerca de 400 euros por mês, em que 200 vão diretamente para a renda de casa. Não sobra nada depois de pagar as contas da luz, da água e os medicamentos. Há anos que recorre à Conferência São Vicente de Paulo, no Cartaxo, onde as voluntárias deveriam providenciar um cabaz alimentar que possa garantir o mínimo de sobrevivência. Fernanda conta-nos que trabalhou toda a vida, mas a reforma trocou-lhe as voltas. Não fez descontos suficientes para conseguir levar uma vida um pouco menos aflitiva. Nos últimos meses, tudo piorou quando a conferência passou a atribuir-lhe apenas umas latas de salsichas e pouco mais por mês.
A habitante do Cartaxo acusa aquela instituição de maltratar quem mais precisa, fazendo um racionamento dos bens injusto, em que privilegia quem à partida não precisa. “Tenho visto muitos carros de alta cilindrada parados junto à sede da associação, com pessoas a saírem de lá com grandes sacos de comida. Dizem-me que para uma pessoa, apenas tenho direito ao que me dão, mas já me ajudaram mais, e isto é inadmissível”. Mas não é a única a queixar-se da forma como as voluntárias gerem os bens. Luís, nome fictício, pois não quis divulgar a sua identidade com medo de represálias, corrobora todas as acusações de Fernanda Gaio nesta relação com a Conferência.
Fernanda Gaio tem insuficiência financeira grave e não tem direito a apoios extra do Estado para além da reforma. A família não ajuda, e apenas conta com o apoio de uma vizinha que lhe vai pagando algumas contas. “Começaram a embirrar comigo na Conferência”, diz. Relata-nos que de início estava estabelecido que por mês teria direito a um pacote de bolachas, uma garrafa de azeite, um pacote de arroz, outro de massa, latas de salsichas e algumas de atum. “O que era pouco, mas agora é pior”. No mês passado, Fernanda levou para casa 2 latas de salsichas, um saquinho com detergente para a roupa, 1 lata de feijão e 1 pacote de farinha. “Tive de pedir para me trocarem por uma de arroz porque eu não como farinha”.
A utente estranha ainda que as pessoas com filhos possam usufruir de algumas peças de frango, e as que vivem sozinhas não tenham direito a nada. “O que alegam é que segundo o Banco Alimentar contra a Fome de Santarém não tenho direito a mais, que é o que está estabelecido por essa entidade”.
Banco Alimentar contra a Fome de Santarém canalizou só num mês 500 quilos de produtos
O Valor Local contactou o Banco Alimentar contra a Fome de Santarém que nega veementemente que tenha algum tipo de interferência quanto às contas que a Conferência faz na distribuição dos cabazes alimentares pelos seus utentes. “Não temos nada a ver com aquilo que a Conferência entrega a cada família”. É nos garantido ainda que no mês passado, o banco alimentar canalizou 500 quilos de produtos para a Conferência no Cartaxo, “fora o que devem receber de supermercados, da Segurança Social, das empresas”, opinou a nossa fonte.
“Toda a gente se queixa que cada vez se recebe menos produtos por parte da Conferência, mas recusam dar a cara. Muitos no Cartaxo comentam esta situação que ali se passa. Inclusivamente conheço uma senhora que deixou de ser lá voluntária porque não queria compactuar com a forma como elas procedem. Não consigo perceber como saem de lá pessoas com sacos a abarrotar e que entram dentro de carros de grande cilindrada. Já eu cada vez que lá vou tenho de suplicar, e ainda me acusam de ter mau feitio”. Fernanda Gaio testemunha estas situações porque reside nas imediações da sede da conferência, que fica situada no edifício da antiga EMEL.
Apesar de saber que não seria normal que lhe dessem alimentos para todas as refeições do mês, acredita que está a ser muito maltratada pela Conferência e já fez saber isto às voluntárias que continuam a ignorá-la, nas suas palavras.
Fernanda Gaio trabalhou em França, mas não conseguiu receber a reforma do estrangeiro. Chegou a trabalhar em supermercados, onde até foi chefe de limpeza, bem como noutros empregos, mas em alguns, os patrões não quiseram fazer os descontos, e eis que se chega a esta fase da vida com uma mão à frente e outra atrás, tendo de esticar a mão à caridade alheia, em que a vizinha é apenas a única pessoa que lhe vale. Somam-se os problemas de saúde em que nem tudo é gratuito seja medicação, seja exames. “No outro dia encomendei uma botija de gás para o fogão e fiquei sem dinheiro para comer”.
A vizinha Maria Luísa, 62 anos, é quem vale a esta mulher. É com muita pena que assiste à situação de Fernanda Gaio. “Cheguei a encontrá-la desmaiada porque tomou uma data de comprimidos para se matar. Não podia deixar de apoiar uma amiga, e a partir dessa altura vou ajudando a pagar as faturas da água e da luz (pouco menos de 30 euros dado que usufrui de alguns benefícios dada a situação de carência) e dou-lhe ainda alguma alimentação.
Há dias dei-lhe um frango, hoje uma caixa de pastéis. Mas já lhe disse para que não passe fome que estou aqui para apoiar”. São amigas há muitos anos. Fernanda diz ter vergonha de ser apoiada pela amiga, mas não tem outra alternativa. Quanto ao que se passa na Conferência, Maria Luísa diz que é algo que corre na cidade, “em que andam por lá brutos Mercedes e BMW com gente a sair da sede delas com muitos sacos de comida”.
“Variei completamente da cabeça. Estavam a dar frango e ovos e eu nunca recebi nada”
Relata ainda, Fernanda Gaio, que numa das últimas vezes percebeu que estavam a ensacar frango e ovos. “Variei da cabeça porque a mim nunca me dão nada. Confrontei-as e disse-lhes que há anos que sou utente e que jamais tive direito a um pedaço de carne. Sempre alegaram que não me podiam dar nada desses produtos alimentares, porque segundo elas a Conferência não tinha acesso a esses bens. Quando descobri que afinal recebiam carne, a desculpa foi que se destinava a famílias de cinco pessoas.
Apanhei-as em falso, e então foram buscar uma perna de frango a uma arca, alegando que das outras vezes se tinham enganado”. “Já gritaram comigo e disseram para me pôr a andar dali para fora, e ir para a Cruz Vermelha do Cartaxo ou para o Banco Alimentar de Santarém procurar apoios. São todas senhoras da Igreja, batem com a mão no peito, mas não valem nada”. E finaliza – “Tudo isto é extremamente injusto, cruel e incorreto e a Conferência tem de ter pessoas imparciais para gerir o processo dos cabazes. Chegaram ao cúmulo de dizerem que eu estava a queixar-me, mas que nesse mês até tinha levado uma caixa de toalhitas para casa. Mas eu agora como toalhitas, foi o que disse para elas, ao que responderam que sendo assim no mês seguinte já não tinha direito”.
Luís recebeu um pacote de massa e outro de arroz para o mês numa altura em que luta contra um cancro
Luís corrobora que nos últimos tempos o cabaz é cada vez mais pequeno. “Da última vez até me disseram que aquilo que estavam a dar para uma pessoa chegava muito bem”. Também vive sozinho e com uma reforma de 550 euros para uma renda de casa de 336 euros. Como tal também vive no limiar da insustentabilidade.
À semelhança de Fernanda, não conseguiu fazer descontos durante a totalidade da vida profissional. Descobriu já muito tarde que a entidade empregadora nunca fizera descontos durante 10 anos, apesar de todos os meses assinar papéis. Começou a trabalhar aos sete anos. Por vezes é a namorada que lhe empresta dinheiro. No mês passado, só teve direito a um pacote de arroz e a um pacote de massa de cotovelinhos, “e pouco mais”. Se não fosse a namorada tinha passado fome. A vida não tem sido amiga deste homem que para além de todas as carências ainda se encontra a lutar contra um cancro.
Conferência de São Vicente de Paulo acusa Fernanda Gaio de mentir
O Valor Local ouviu Isabel Pimenta, da Conferência de São Vicente de Paulo, que refere que aquilo que é dado a Fernanda Gaio é o que “normalmente conseguimos para uma pessoa que vive sozinha”, pois “quando damos mais é porque estamos a falar de agregados familiares maiores”. Garante ainda que Fernanda Gaio está a mentir porque “para além de levar o cabaz do mês, quando se vem queixar que lhe falta isto ou aquilo nós providenciamos”. Quanto aos sacos com carne de frago, garante que “isso também não é verdade”. “Por vezes temos, mas damos-lhe menos do que a famílias com quatro ou cinco pessoas. Não alimentamos nenhuma família o mês inteiro, damos um apoiozinho”.
A responsável refuta todas as declarações de Fernanda Gaio ao nosso jornal, corroboradas na íntegra pelo utente Luís. Garante ainda que não faltam produtos no cabaz em que se incluem também diversos produtos de higiene e limpeza, massas, arroz, farinhas, enlatados. “Uma pessoa sozinha leva um saco cheio”. As dádivas vêm do Banco Alimentar, Cáritas e particulares. Peixe e carne “nem sempre temos”. “Aliás muita gente que não está inscrita e que chega a ir lá pedir comida, leva logo um saco para casa”. Fernanda Gaio contesta, pois, segundo a mesma “estão sempre a pedir imensa papelada para comprovarem da nossa condição económica para darem alguma coisa”. Isabel Pimenta nega que alguma vez tenha recusado comida à utente em causa. “Inclusivamente já nos pediu uma determinada marca de arroz e recusou o gel de banho porque prefere o sabonete”.
Esta associação apoia 150 famílias, um número que tem aumentado nos últimos anos. Reage ainda à acusação de que há quem se dirija à associação de automóvel de luxo buscar bens que à partida não serão para pessoas carenciadas – “Muitas vezes essas pessoas não têm forma de ir buscar os cabazes e pedem a vizinhos ou amigos. É essa explicação. Também se pode dar o caso de sermos nós voluntárias a ir levar bens de carro aos utentes”. Quanto à atitude de Fernanda Gaio limita-se a resumir sem querer aprofundar – “As pessoas querem sempre mais, é normal”.