Numa entrevista ao Valor Local em vésperas de mais uma edição da Feira Nacional da Agricultura, Luís Mira dispara em várias direções. Em causa a degradação das relações entre agricultores e a ministra da tutela, Maria do Céu Antunes
Numa altura em que a relação dos agricultores portugueses está a ferro e fogo com a ministra do setor, Maria do Céu Antunes, entrevistamos Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal sobre os problemas na Agricultura, a falta de apoios, e o que falta fazer para o setor se modernizar. A escassos dias do início da Feira Nacional da Agricultura, Luís Mira revela que a ministra não foi convidada a estar presente na feira nem nenhum membro do Governo.
Valor Local – Estamos novamente a passar um quadro de seca severa em Portugal e no imediato o que pedem os agricultores? Foram anunciadas algumas medidas pela ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, mas consideradas com pouca consistência por parte dos produtores.
Luís Mira- Nem o Governo nem a classe política em Portugal têm a noção ou a preocupação necessárias em relação ao recurso água. Ano após ano estamos a ter este debate porque estruturalmente não se consegue perceber isto, porque não faz parte da agenda política do Governo nem da oposição. Vou dar aqui o exemplo de França que também está a passar por uma seca, só que o ministro francês da Agricultura foi, esta semana, aos Pirenéus Orientais e garantiu um caudal mínimo para a rega para que de alguma forma se consiga amortizar as perdas da produção. Assinalou que isso era importante para a sobrevivência das plantas. Cá não se tem noção disso. Tudo isto entronca na soberania alimentar francesa em última análise. Por outro lado, o Governo daquele país cobrirá as perdas resultantes da seca, incluindo as dos agricultores que não têm seguros. Será ainda atribuído um subsídio de solidariedade nacional às produções mais afetadas pelos efeitos da seca. Cá ainda se esteve à espera que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) viesse dizer que estamos a atravessar uma seca para se tomar uma decisão, quando desde janeiro que não chove. Tudo isto só para compararmos as diferenças na abordagem aos problemas e as soluções encontradas.
Os nossos agricultores não estão à espera de grandes medidas por parte do Estado português.
Há uma grande falta de noção e de sensibilidade para os problemas. Apenas lhe li as medidas francesas, podia agora continuar com as espanholas. Ainda em França, o Governo vai implementar um desagravamento fiscal sobre os terrenos agrícolas e um alargamento das contribuições sociais e pediu ainda um adiantamento à União Europeia das ajudas da Política Agrícola Comum.
Contudo no site do ministério da Agricultura estão patentes algumas medidas para ajudar nesta situação da seca, nomeadamente, apoios para a construção de charcas.
O que se passa é que depois a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) não dá autorização para a construção das charcas nem para a captação da água do furo. Portanto esse apoio é inexistente e passa por enganar mais uma vez as pessoas. Ainda hoje vi nas notícias que a APA permitiu que se fizesse um furo no Algarve. É isto que o Governo mostra. O Governo vai andando com estas manobras de distração.
Com a Confederação dos Agricultores Portugueses e a ministra de costas voltadas é difícil chegar a consensos e resolver os problemas do setor.
Continuamos a falar com a ministra, apenas não a convidamos para festas e feiras do setor, como será o caso da Feira Nacional da Agricultura. Nenhum membro do Governo será convidado. Há muitas formas de manifestar o nosso protesto. Alguns membros tiveram de ser desconvidados porque não há condições para estarem na feira. O Governo não mostra sensibilidade nenhuma para os nossos problemas.
Como é que chegámos a este ponto? É apenas um caso de insensibilidade e de intransigência da ministra?
O que se passa é que as medidas não chegam aos agricultores. Nenhuma delas que foi aprovada no ano passado chegou aos agricultores. O Governo tem as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e entendeu que não faziam falta para o recurso – água. Isso é gravíssimo. Espanha investiu 25 mil milhões na gestão eficiente da água e Portugal 300 mil euros com a barragem do Pisão. Está tudo dito!
Muito se fala aqui para o Ribatejo e nesta questão da seca, da criação do projeto Tejo, que se baseia numa autoestrada da água com expansão da área regada no Vale do Tejo com mais açudes e barragens naquele curso de água. Como é que a CAP vê este projeto?
É um projeto importante, mas importa que se saia do papel. Temos de decidir e concretizar essa solução de gestão eficiente da água. Mas voltamos ao mesmo: o Governo português não tem sensibilidade para um projeto desses.
Ao mesmo tempo assistimos a um galopar dos preços de bens essenciais alimentares nos supermercados, e mesmo com o IVA a zero por cento, o Governo já veio avisar que os preços de alimentos como o tomate, o pão e a batata podem aumentar, devido à seca.
É mais um constrangimento para os agricultores e para os consumidores. Quando temos uma seca desta dimensão, temos uma redução na produção de cereais de mais de 50 por cento, a que se juntam as contingências da guerra na Ucrânia. Não é com o IVA zero que se vai resolver isto.
OUÇA A ENTREVISTA A LUÍS MIRA
As cadeias de hipermercados vieram culpar os produtores pelo aumento da inflação, ou seja, apontaram o dedo ao primeiro elo da cadeia. Como é que viu esta tomada de posição?
Toda a gente sabe que os custos de produção aumentaram. Os adubos subiram 150 por cento, a energia 200 por cento, como tal tudo tem de ser refletido nos preços. Agora os agricultores não ganharam mais dinheiro com isso. Aliás o Instituto Nacional de Estatística adiantou que os agricultores tinham reduzido o seu rendimento em 12 por cento. Neste esquema todo de preços quem ganhou mais com esta conjuntura foi o Estado através dos impostos.
Um estudo da Pordata sustenta que em quase três décadas, a agricultura perdeu quase um milhão de trabalhadores, o que dá uma média de 30 mil por ano. Como é que analisa estas conclusões?
Esse estudo também pode ser revelador da crescente mecanização da agricultura. Basta olharmos para as vindimas, apanha da azeitona e do tomate, que hoje são maioritariamente com recurso a máquinas. Apenas a apanha de alguns frutos e hortícolas ainda recorre ao trabalho humano, mas caminhamos para que possa ser substituído pelo braço robótico.
Como é que tem sido a adaptação dos agricultores portugueses às alterações climáticas?
Têm-se adaptado através de ajustes nas culturas, introdução de novas tecnologias como o sistema gota a gota, sensores no solo, informação gerida por computadores, procura de espécies mais bem adaptadas à seca. E não deverão ficar por aqui dado que as alterações climáticas são cada vez mais notórias e a seca é um reflexo disso.
Tudo isso aliado à necessidade de mais sustentabilidade ambiental?
Sim, mas há algo fundamental- precisamos de uma cobertura 5G na agricultura para que com mais tecnologia possamos passar para um patamar mais elevado na sustentabilidade ambiental. Temos aparelhos que tratam cada metro quadrado do campo consoante as culturas e as necessidades do terreno e passa por aí a eficiência dos fatores de produção. É importante que os agricultores possam ter acesso a estas ferramentas que sabemos que não são para amanhã, mas são o futuro.
Foi anunciado o Plano Nacional do Regadio em 2018 que pretendia criar mais 100 mil hectares de novos regadios até este ano de 2023. Isto mesmo foi o que disse numa entrevista ao Valor Local o antigo ministro da Agricultura Capoulas Santos. Qual é o estado deste plano?
Tenho a certeza que esse plano tem andado muito lentamente e não está nada perto dos 100 mil hectares, mesmo a grande área que se projetava para esse objetivo, a do Alqueva, está com valores muito reduzidos em relação ao que se projetava inicialmente.