Com chamada “época de fogos” no fim, a Rádio Valor Local foi ouvir os especialistas na matéria. O que correu bem e menos bem, foi o tema abordado neste programa onde participaram Eifel Garcia, comandante dos Bombeiros Voluntários de Alcoentre, António Carvalho, Comandante da Proteção Civil de Vila Franca de Xira, a vereadora Ana Coelho, da Câmara Municipal de Azambuja, em estúdio, mas também Marco Martins da Liga dos Bombeiros Portugueses e a psicóloga Ana Garret da Unidade Local de Saúde do Estuário do Tejo.
Neste ano de 2024, a palavra-chave foi a prevenção, algo que os corpos de bombeiros e respetivos serviços de proteção civil têm vindo a fazer junto das populações. Uma ação fundamental para que a área ardida nos concelhos da nossa região seja mínima e que as pessoas e bens sejam, naturalmente, poupados.
Aliás esse foi mesmo um dos desafios. Apesar de existirem coimas pesadas para a falta de limpeza dos terrenos, a dificuldade de identificar os proprietários, ou o facto de as pessoas mais idosas terem mais dificuldade para pagarem esses serviços, são um “Calcanhar de Aquiles” de todo este processo.
Tanto em Azambuja como no concelho de Vila Franca de Xira, muitas vezes são as autarquias que se substituem aos proprietários, pese embora a realização de inúmeras campanhas nos meios de comunicação social.
Aliás, segundo António Carvalho, a dificuldade financeira das famílias leva muitas vezes a que o município tenha de ficar com o prejuízo, uma situação idêntica, àquela que se passa em Azambuja, sendo que a vereadora Ana Coelho refere também a dificuldade na identificação de muitos dos proprietários de terrenos, que hoje estão abandonados.
Os serviços de limpeza dos terrenos são dispendiosos. Há poucas empresas que o fazem, mas também não há muita mão de obra. E esse é outro dos problemas que as populações enfrentam.
Ainda assim, este foi um ano relativamente tranquilo. No concelho de Azambuja, o fogo que ocorreu na Maçussa, a 22 de agosto, foi aquele que mais preocupou as populações e bombeiros. Ana Coelho sublinhou mesmo que no concelho de Azambuja, houve “cerca de 20 hectares de área ardida, sendo que um dos nossos principais incêndios, ocorreu nesse dia nessa freguesia, e consumiu logo cerca de 17,8 hectares”, sublinhando, ao mesmo tempo que o maior fogo do ano “foi de causa intencional”.
Ainda assim, e segundo Eifel Garcia, comandante dos Voluntários de Alcoentre, o incêndio da Maçussa, que embora tenha sido o maior do ano no concelho, foi considerado moderado, mas podia ter sido pior, dadas as condições do terreno, destacando a humidade baixa e o local onde foi colocada a ignição, num vale “que proporcionou que o incêndio ganhasse grande intensidade logo ao início”. O operacional falou também numa questão de sorte e o facto de as corporações que vieram ajudar terem conhecimento do terreno, algo igualmente importante.
“Quero salientar que houve ali a bravura dos bombeiros e que conseguimos de facto ter um bom trabalho. Esse trabalho foi de facto célere e importante com a ajuda mútua dos elementos de comando que estiveram mais próximos aqui da zona e que nos ajudaram logo de início” refere Eifel Garcia.
Já em Vila Franca a área ardida foi muito menor. O concelho é um misto de urbano e rural e isso traz desafios acrescidos na hora do combate a um incêndio. António Carvalho, comandante da Proteção Civil Municipal e Comandante do Quadro de Honra dos Bombeiros da Póvoa de Santa Iria, sublinha que as dificuldades para os bombeiros são muito idênticas de concelho para concelho.
O comandante sublinha que este foi um ano calmo: “Tivemos 94 ocorrências, mas só tivemos 4 hectares ardidos, sendo que o maior incêndio consumiu 1.4 hectares”.
António Carvalho sustenta que estes números baixos, só são possíveis “porque também tem havido da parte do município e das empresas uma aposta quer na limpeza de terrenos, quer na sensibilização”, destacando a existência de “ações conjuntas da proteção civil, bombeiros, PSP e GNR, no sentido de sensibilizar as populações, quer com as medidas de autoproteção, quer para a limpeza dos terrenos”.
Fogos com mão criminosa, e quando aquele que quer ajudar a combater o incêndio, é quem o ateou
Quando um incêndio acontece durante a noite, quase sempre isso é de origem duvidosa. As populações desconfiam, as autoridades desconfiam, e os bombeiros, claro desconfiam. Um estudo recente, dá conta que dois terços dos incêndios em Portugal são de origem humana. Com ou sem intenção, estes números têm sido no terreno, uma dor de cabeça para os bombeiros, e também para o Governo que já prometeu “mão pesada” e “tolerância zero” a estes comportamentos.
Há efetivamente muitas situações que nos dão conta de que quase dois ou três terços dos incêndios acontecem no período noturno. Para além de serem durante a noite, têm a agravante de serem fogos provocados por mão humana. Muitos de forma intencional, outros provavelmente por algum desconhecimento, isto pese embora a existência de campanhas, muitas campanhas da Autoridade Nacional, das câmaras municipais, das freguesias e até dos próprios corpos de bombeiros, a pedirem para que os cidadãos eventualmente não façam queimas, nem queimadas, principalmente nos dias de maior risco de calor.
Eifel Garcia não tem dúvidas, “São sempre situações complicadas. Nós podemos desconfiar. Não podemos dizer que é pessoa A, B, C ou D”, e vai mais longe ao referir: “Muitas das vezes a pessoa que supostamente colocou a ignição está perto de nós. Até nos está a auxiliar. Portanto, o que vai na cabeça das pessoas nós não sabemos”.
Segundo o comandante de Alcoentre “podemos desconfiar, além de alertarmos as autoridades competentes para a situação. Quando detetamos algo estranho, aquilo que fazemos é identificar o local, preservar ali os vestígios daquilo que possa acontecer, e depois a partir daí está entregue às autoridades, nós bombeiros desligamos um bocadinho”.
No concelho de Vila Franca de Xira, não é muito diferente. O comandante António Carvalho também aborda o assunto, mas numa outra perspetiva. Elogia o trabalho das forças de segurança e divide os fogos não naturais em duas categorias: A mão humana, seja ela intencional, no caso dos pirómanos e outros, mas também os negligentes. Recorda por isso a sua experiência no terreno e a necessidade de alguma pedagogia junto de uma faixa etária mais envelhecida sobre o uso do fogo e alerta para o facto de que devem existir mais campanhas tendo em vista “alguma educação para o risco, junto dos idosos que estavam habituados a tratar o fogo de determinada maneira” mas hoje, quer pelas alterações climáticas, quer por um conjunto de questões, rapidamente um pequeno fogacho aparentemente controlável, pode descambar e dar início a um incêndio de maiores dimensões.
Aliás António Carvalho, refere mesmo que as campanhas levadas a cabo pela Câmara de Vila Franca têm surtido efeito – “Nota-se pelo menor número de ignições, ou seja, cada vez mais as pessoas registam as queimas que querem fazer e por isso respeitam também quando fechamos a plataforma, porque as condições não são propícias para usar o fogo”, uma situação semelhante que também ocorre em Azambuja.
Mas isso não desculpa a mão criminosa. E sobre esse tema, Ana Coelho refere mesmo que “este último incêndio que houve na Maçussa está classificado como intencional e esta situação, como é óbvio, preocupa-nos sempre” e sublinha que em conjunto com as forças de segurança, nomeadamente a GNR “temos feito também aqui um trabalho de grande proximidade, em que todos os anos apostam na questão da formação juntamente com os bombeiros, e na questão da preservação das provas, importantes para se chegar ao eventual pirómano”.
Ana Garret, ULS Estuário do Tejo: Piromania é um transtorno que pode ser tratado
Para a psicóloga Ana Garret da ULS do Estuário do Tejo, não há dúvidas: “A piromania é claramente um transtorno psicológico, aliás está descrito como tal no manual das doenças psicológicas e psiquiátricas”.
A clínica recorda que os critérios mais emblemáticos são de “uma tendência ao prazer e à satisfação a provocar incêndios, ficar a olhar o fogo e o seu desenvolvimento”, e acrescenta a existência de uma tensão prévia. Acontece “uma grande descarga emocional durante o planeamento do crime, e portanto, nos preparativos da ação, digamos assim, antes de o fogo ser propriamente ateado”.
É também comum “o pirómano ficar junto ao local que terá incendiado”. “Fica a observar toda a sua movimentação, nomeadamente, a ação dos bombeiros, e dos habitantes que tentam colocar cobro ao incêndio”. “Toda aquela movimentação, toda aquela confusão inerente ao combate às chamas, por norma, proporciona ao pirómano um grande alívio e uma certa satisfação nessa observação”.
Por outro lado, salienta a necessidade de “tentar perceber que o pirómano não tem qualquer interesse em ganhos financeiros, portanto, acaba por não ser um crime enquadrável nessa perspetiva”. “Serve apenas para uma descarga da sua pulsão, e por norma, muitas vezes há algumas outras patologias associadas a esta situação”.
Segundo Anda Garret, estas são pessoas com personalidades borderline, antissociais, pouco empáticas, mais afastadas dos circuitos e com falta de uma matriz social que agregasse ali, no fundo, algum apoio. “São indivíduos mais introspetivos, mais tímidos, contudo não é muito fácil identificar um pirómano, digamos assim, porque não demonstram arrependimento sobre a situação, e raramente procuram ajuda”.
Por outro lado, recorda que “o pirómano não deve ser exclusivamente preso, sem que haja também um acompanhamento psicológico e de psicoterapia, também associado a alguma medicação, com a administração de antidepressivos, para refrear justamente esses impulsos”, sustenta.