“Aquela fábrica está muito degradada (a cair de podre não hesita mesmo em dizer) e isso é uma coisa que é certa” é assim que a testemunha Belmiro Serra se refere ao que diz ser “o estado de degradação” das instalações da ADP, e que entre outubro e novembro de 2014, foi uma das vítimas do surto da doença da legionella, durante o qual morreram 13 pessoas num total de 403 infetados. Fazia parte da equipa da Tubogal que durante alguns dias tinha como incumbência colocar andaimes destinados à limpeza das torres de refrigeração, operação que costuma acontecer todos os anos.
Conta que foi a primeira vez que esteve a trabalhar no local. Nunca tinha ouvido falar da existência do vírus da legionella. Andou durante quase uma semana a montar os andaimes e logo nos primeiros dias começou a sentir os primeiros sintomas. A vítima vai mais longe na sua apreciação ao estado de coisas do que pôde ver na Adubos de Portugal – “Há lá um local que julgo que oferece mesmo perigo de ruína e ameaça à segurança”. “Quem vê por fora não diz que aquilo está tão mau, mas lá dentro está muita coisa estragada, não sei se derivado aos ácidos, mas apresenta uma grande corrosão”. A ADP ouvida pelo Valor Local sobre o conteúdo expresso por esta testemunha diz recusar tal possibilidade: “A licença ambiental da fábrica da ADP foi renovada já após o surto de legionella, o que demonstra de forma inequívoca que cumpre, como sempre cumpriu, todos os requisitos de segurança para operar”.
Contudo durante os dias em que por lá andou Belmiro Serra cingiu-se a fazer o seu trabalho em conjunto com os colegas. Um deles Manuel Lima acabaria por falecer no regresso ao Porto, onde a empresa Tubogal está sedeada. Belmiro Serra diz que andou mesmo “à beira das torres de refrigeração”, ou seja no epicentro do foco que acabaria por despoletar o surto epidémico, de acordo com a acusação.
“Andei bastante aflito. Andamos sempre à espera que as coisas passem, mas elas não passam”
Logo no segundo dia de trabalho começou a sentir-se febril. Pediu a um colega para ir à farmácia comprar um medicamento dos mais conhecidos para as gripes – “Mas claro que não resultou”. Os primeiros sintomas aconteceram numa terça-feira mas só na quinta Belmiro Serra foi pela primeira vez ao hospital. Foi em Setúbal, localidade onde a equipa da Tubogal estava hospedada – “Entretanto comecei a perder a vontade de comer e acabei por não cumprir a medicação”, recorda-se. Mas mesmo assim ainda foi trabalhar até chegar a sábado. “Andei bastante aflito. Andamos sempre à espera que as coisas passem, mas elas não passam”, resume assim aqueles dias, até porque “parecia uma gripe normal”.
Voltou ao hospital apenas na segunda-feira seguinte, primeira folga da semana. Nesta altura já tinha regressado a casa, ao Porto. Como se não bastasse e com um quadro evolutivo da doença ainda esperou seis horas para ser atendido no Hospital de Santo António. “Deram-me pulseira amarela”. Ficou duas semanas internado. Ao contrário de outras vítimas refere que não ficou com sequelas e continua a fazer a sua vida normal. Tem 53 anos. A Belmiro Serra não foi identificada a estirpe ST1905 a associada a este surto e apenas associada à infeção de 73 vítimas em sede de nexo de casualidade.
O seu colega Manuel Lima ficou conhecido como a primeira vítima identificada do surto. Acabaria por falecer dias depois já no Porto. Divorciado vivia com a mãe que também ela acabaria por ficar infetada e igualmente sucumbir. Passados três anos, Belmiro Serra não consegue dizer muitas palavras quando recorda os acontecimentos. Despede-se apenas com um: “É complicado”.
Três anos passados, e segundo o Ministério Público estão acusados no processo da legionella sete arguidos, pela prática dos crimes de infração de regras de construção (conservação) e ofensas à integridade física por negligência. O crime de poluição acabou por não ser incorporado por inexistência de legislação sobre a legionella apesar de ser conhecida das empresas a publicação informal “Prevenção e controlo da legionella nos sistemas de água” que segundo se pode ler no processo deveria ser incorporada no âmbito das melhores práticas ambientais. São arguidos neste processo João Paulo Cabral, vogal do conselho de administração da ADP, José Carvalhinho, igualmente responsável da empresa, e Eduardo Miguel Ribeiro. Da parte da empresa General Eletric, incumbida de proceder à limpeza nas torres de refrigeração, são arguidos Ricardo Lopes, Liliana Correia, Maria Viana e Nélio Moreira. Também as duas empresas foram constituídas arguidas pela prática do crime de infração de regras de construção (conservação).
Segundo o relatório da Polícia Judiciária, a que o Valor Local teve acesso, a Adubos de Portugal que teria de fazer a limpeza das suas torres de refrigeração durante 15 dias numa ação programada durante o mês de outubro, entre os dias 10 e 20, tinha incumbido a GE de operar esse mesmo serviço. Esta era uma contratada que tinha surgido nesse ano como fornecedor e com o qual a ADP tinha solicitado análises trimestrais à legionella (que até à data do surto e desde que a empresa entrou ao serviço em julho daquele ano ainda não tinham sido concretizadas em nenhuma ocasião) entre outros serviços relacionados com as torres de refrigeração nomeadamente a instalação do sistema “True Sense Online” destinado a monitorizar e dosear automaticamente a aplicação dos produtos. À data apenas se encontrava no segundo circuito. Para trás ficava um contrato interrompido com a empresa Quimitécnica. A fábrica costumava parar em agosto, mas tendo em conta o novo contrato e a aquisição de mais componentes optou-se por um encerramento mais curto e dois meses depois.
A estirpe foi encontrada no oitavo circuito das torres
A estirpe foi encontrada no oitavo circuito das torres, de difícil acesso porquanto a construção da empresa é antiga. Na altura da sua construção, a doença dos legionários era pouco conhecida. Normalmente essa limpeza do oitavo circuito fazia-se com recurso a trabalho manual vulgo uma mangueira através de um choque de biocida que teria de ser manuseada por trabalhador da GE. Tal operação estava marcada para o dia 10 de outubro e revelava-se como essencial para a correta limpeza e desinfeção dos circuitos hidráulicos, e impedir a proliferação de biofilme: organismos nocivos, nomeadamente, a legionella. A fábrica voltou à laboração dias mais tarde sem que o biocida tivesse sido aplicado, originando à partida o que se veio a seguir. Após paragem o arranque das torres é descrito em vários estudos como sendo crítico para a disseminação das bactérias nos aerossóis, uma vez que durante a paragem pode ocorrer a estagnação de águas nalgum local do sistema, que pode ser propiciadora da multiplicação de bactérias.
Exames microbiológicos revelavam níveis acima do esperado
Esta é uma conclusão bem presente no relatório do Ministério Público que acusa de incúria várias pessoas neste processo, a começar pelos trabalhadores e responsáveis afetos à General Eletric. Esta empresa refere no processo que as análises à legionella não foram feitas porquanto o sistema não se encontrava ainda a funcionar em pleno. Nos documentos do Ministério Público é constatado que a GE apesar de ter verificado que os circuitos estavam em funcionamento não procedeu a qualquer verificação/monitorização das condições das torres. Exames microbiológicos levados a cabo pelos profissionais da Direção Geral de Saúde a oito de novembro provaram que os índices de legionella eram superiores aos desejáveis. A IGAMAOT que esteve na fábrica da ADP a recolher amostras de água entre 11 e 13 de novembro deduziu a existência de uma elevada atividade biológica tendo estabelecido uma contraordenação ambiental grave.
Reportagem Valor Local 30 Outubro de 2017