A Farmácia Hospitalar da Unidade Local de Saúde do Estuário do Tejo (ULSTEJO) foi distinguida com uma menção honrosa da Ordem dos Farmacêuticos. Fomos conhecer este serviço que nem sempre está presente na mente de quem se desloca ao hospital ou ao centro de saúde para tratar um qualquer problema de saúde. Carla Ferrer, diretora do serviço de farmácia da ULS, dá a conhecer esta valência. Todos os dias são dispensados centenas ou milhares de comprimidos aos utentes do hospital quer seja nas urgências, no internamento, ou nas consultas de especialidade. E desde há um ano aos vários centros de saúde na esfera da ULS.
As farmácias hospitalares são conhecidas por dispensarem fármacos aos utentes, por exemplo, com doenças autoimunes, HIV, hepatite C, “que não são vendidos nas farmácias” fora do hospital. Alguns destes medicamentos podem custar ao Estado entre 1000 e 500 euros mês. “No caso dos doentes com HIV estão a custar cerca de 400 euros nas terapêuticas regulares”, exemplifica. Cabe a Carla Ferrer e à sua equipa monitorizar a administração destes fármacos super potentes e olhar aos efeitos secundários que podem ser significativos, mas acabam por ser atualmente a última fronteira para uma reversão positiva do estado de saúde de muitos utentes. Foi criada uma consulta específica pela equipa de farmácia. O doente não só é acompanhado pelo seu médico da especialidade, mas também pelo seu farmacêutico hospitalar que, no dia consulta, lhe dispensa a dose necessária de fármacos para o ajudar no tratamento.
Atualmente a ciência abriu muitos caminhos na descoberta de novas metodologias de tratamento, e no caso dos medicamentos biológicos, o farmacêutico hospitalar tem um papel preponderante no sucesso do doente. Por vezes, nem sempre é fácil que o doente mantenha uma rotina na toma dos medicamentos, “por causa dos efeitos adversos”, sendo que acaba por ter “mais facilidade em contar-nos do que ao médico que não consegue disciplinar-se na toma dos fármacos. Comunicamos de imediato ao médico essas dificuldades”.
Uma das áreas de estudo da diretora de serviço prende-se com os biossimilares, desenvolvidos após o expirar da patente dos biológicos que acabam por ser mais baratos. Na administração destes fármacos, o desafio é grande pois são necessários ajustes permanentes. A responsável exemplifica esta nuance – “Muitas vezes, há doentes que de todo não respondem ao tratamento, sendo que os intitulamos de não-respondedores primários, e há outros que respondem durante muito tempo e depois, de um momento para o outro, deixam de o fazer.” Em 2018, o hospital através da equipa de Carla Ferrer começou a aplicar o princípio da farmacocinética dos medicamentos biológicos, ou seja, perceber como cada indivíduo reage à toma de determinado medicamento desde a absorção até à excreção.
Uma das áreas em que teve oportunidade de testar os doseamentos nos diferentes fármacos foi na gastroenterologia, “que não tinha muitas armas terapêuticas para tratar a doença inflamatória intestinal, fazendo estes doseamentos”. “Agarrei nesse projeto em 2018 e começámos a fazer isto de forma proativa, não só quando os doentes estão a deixar de ter resposta.” Esta acaba por ser uma ciência do ajuste contínuo porque o doente pode responder “muito bem a uma terapêutica e deixar de o conseguir de um momento para o outro”. É a denominada “perda de resposta secundária” em que o “organismo passar a eliminar o medicamento mais depressa”. Tudo depende da morfologia interna do doente e não tanto da gravidade da manifestação de determinada doença. Carla Ferrer simplifica – “Algo acontece porque várias coisas podem correr mal, temos de agir por tentativa e erro”. A grande mais valia é que neste momento, o hospital consegue fazer um teste inicial. Apesar dos prós e contras “os medicamentos biológicos trouxeram mais valias, porque evitam que as doenças evoluam ainda mais e no fundo previne-se até a morte”.
Hospital de Vila Franca testou medicamento e retirou-o a tempo
Uma das maiores responsabilidades da equipa de farmácia do hospital prende-se com o teste de novos medicamentos que saíram para o mercado. Foi dispensada há poucos anos uma medicação nova e à partida prometedora para tratamento dos miomas na consulta de Ginecologia. “De repente sete doentes apareceram-nos com reações adversas graves, ficaram ictéricas, amarelas. Reportámos para o Infarmed. Decidimos suspender a dispensa. Passado um mês, suspenderam a nível mundial a sua utilização, porque tinham morrido uma série de mulheres na Inglaterra e em Espanha, e outras tiveram de receber um transplante hepático”. No caso do hospital “as pacientes vinham de um mesmo médico e foi possível reunir logo ali toda aquela informação, que podia ter passado despercebida se viesse de médicos diferentes”.
Os novos desafios da ciência na produção de medicamentos
Uma das maiores transformações trazidas pela ciência diz respeito aos fármacos que têm vindo a ser colocados à disposição no tratamento do HIV. “Quando comecei a trabalhar foi no Curry Cabral, um dos primeiros hospitais a tratar o HIV. Aliás, na altura a minha família até teve medo que ficasse contagiada. Portanto, havia muito este misto e entre o que vemos hoje e aquilo que tínhamos no início não existe comparação possível. Atualmente temos uma doença crónica em que estão a surgir no mercado, inclusive, novamente, antirretrovirais de administração endovenosa, mas que permitem administrações mais espaçadas. Portanto, o doente não tem de fazer aquela medicação todos os dias. São medicamentos considerados tão efetivos quanto os esquemas terapêuticos recomendados por via oral.”
Um dos mais recentes avanços da medicina diz respeito às terapias avançadas, que consistem grosso modo na obtenção de medicamentos através de células, genes ou de tecidos. “É o que temos de mais gritante neste momento e de que se fala muito. São respostas muito mais individualizadas e onde é possível avaliar logo se o doente vai responder ou não. E aí estamos a falar de terapêuticas de milhões, não são milhares. Portanto, terapia génica”, em que um dos exemplos refere-se ao mais que badalado caso das gémeas e dos quatro milhões que o Estado português desembolsou para obter os fármacos necessários.
O medicamento das gémeas brasileiras
O valor do fármaco Zolengsma utilizado para tratar a Atrofia Muscular Espinhal é caro tendo em conta que o número de pacientes com este quadro é raro. “Sempre que estamos a falar de situações raras, os preços disparam. Numa fase inicial são tão poucas as crianças tratadas que por vezes nem sabemos se resultou porque foi uma sorte ou porque o fármaco teve sucesso efetivamente”.
Sem querer fazer muitas considerações políticas, Carla Ferrer considera que é de pensar o crescente fenómeno do turismo de saúde em Portugal, onde o Serviço Nacional de Saúde paga os tratamentos na íntegra aos doentes ao contrário de outros países. “É que somos todos nós que estamos a pagar isto”.
A menção honrosa da Ordem dos Farmacêuticos
Para Carla Ferrer, a menção honrosa foi um grande motivo de orgulho, tendo a ULS sido distinguida a nível das boas práticas, nomeadamente, “ao proporcionarmos a nossa consulta de farmácia”, mas também nos “doseamentos séricos destinados a otimizar os tratamentos”.
Mas esta não foi a primeira vez que a farmácia do hospital ganhou prémios – “Ganhámos o primeiro prémio numa iniciativa que foi 30 anos de boas práticas exatamente com este projeto da consulta farmacêutica”.
“A Associação Portuguesa de Farmacêuticas Hospitalares todos os anos lança um ou outro concurso destes. Aliás, tenho ali atrás aquele Health Care Excellence em que trouxemos também uma menção honrosa com a consulta”, aponta.
Esta fi uma consulta “inovadora e muitos hospitais vieram aqui ver como é que fazemos e depois acabaram por replicar de uma forma ou de outra”. Arrancou ainda no hospital antigo em 2009 no tratamento do HIV.
“Portanto, sentimo-nos motivados como profissionais. É bom trabalharmos num local onde efetivamente eu tenho as condições e os equipamentos que estão nos melhores hospitais”. A responsável refere-se a uma máquina reembaladora adquirida pela presenta administração que veio simplificar muito mais a tarefa da sua equipa.
“Nós não enviamos para os serviços de internamento as caixinhas de medicamentos. Cortamos as unidades. Está a ver os blisters? É tudo cortado e vai um a um. Até à chegada do Conselho de Administração, e até passarmos a EPE, Os colegas, os assistentes operacionais tinham que cortar milhares de comprimidos por dia. Tanto que a nossa capacidade de reembalagem era só de 40 por cento daquilo que precisávamos de ter todos os dias. Portanto, andávamos sempre no limite. Porque não sai nada para os serviços que não esteja totalmente identificado.”