Socialmente bem aceite, quando não associado a status e glamour, o álcool tem sido muitas vezes o inimigo invisível e desconsiderado, mas é cada vez mais preocupante, no nosso país, o número de adições devido ao consumo exagerado de bebidas alcoólicas. O Valor Local esteve na comunidade terapêutica da Associação Picapau em Santarém, a mais próxima na nossa área de influência, onde tomámos conhecimento da mudança de paradigma. Se nos anos 90, altura em que a comunidade foi criada, a maioria dos utentes era muito jovem e com problemas de consumos ligados às drogas, hoje a maioria são pessoas mais velhas, muitas com mais de 50 anos, e com dependências de alcoolismo. Uma tendência que se repercute em muitas zonas do país. Entrevistamos duas pessoas que estão na associação que tentam a todo o custo mudar de vida, bem como o presidente da mesma que nos dá conta das dificuldades e do trabalho que esta organização leva a cabo.
De acordo com o último estudo disponibilizado pelo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) referente a 2022, mas apenas disponibilizado em 2024, não houve melhorias nos indicadores para o alcoolismo e as diferentes repercussões na vida em sociedade nos últimos anos (ver infografias mais à frente neste trabalho que retratam alguns destes dados). Apesar do aumento da abstinência na população geral (15-74 anos), entre 2017 e 2022 em que diminuiu a idade média de início dos consumos, aumentou o consumo recente e atual de álcool, a embriaguez severa, os consumos de risco elevado e a dependência (esta tem vindo a aumentar desde 2012 e quase quadruplicou em dez anos). Isso mesmo aponta o coordenador nacional para os comportamentos aditivos e toxicodependências, João Goulão neste mesmo estudo.
Aumento dos consumos binge entre os jovens
Os agravamentos foram transversais a ambos os sexos e à maioria dos grupos etários, embora mais expressivos nos homens e em algumas idades, como o consumo de risco elevado nos 15-24 anos e 25-34 anos e a dependência nos 35-44 anos e 45-54 anos. No contexto das populações escolares, o estudo mais recente evidenciou uma estabilidade dos consumos de álcool entre 2018 e 2022, mas já entre os jovens de 18 anos em 2022 houve um aumento do consumo binge (consumir mais de quatro bebidas alcoólicas se for mulher ou mais de seis, se for homem, na mesma ocasião) e da embriaguez, entenda-se ficar a cambalear ou ter dificuldades em falar (os valores mais altos desde 2015), e em particular no grupo feminino.

“Perante este cenário, não é de estranhar que tenha subido pelo segundo ano consecutivo o número dos que iniciaram tratamento por problemas relacionados com o uso de álcool, atingindo o valor mais alto dos últimos dez anos (sobretudo à custa dos readmitidos), assim como os internamentos hospitalares com diagnósticos atribuíveis ao consumo de álcool, com o valor de 2022 a ser o mais alto dos últimos cinco anos”. “Assistimos ainda a evoluções negativas ao nível da mortalidade, com os óbitos por doenças atribuíveis ao álcool em 2020 e 2021 a serem os mais altos dos últimos dez anos e, as vítimas mortais de acidentes de viação sob a influência do álcool a aumentarem em 2021 e 2022, atingindo já os níveis pré-pandémicos”, conclui o coordenador.
Muito dos alcoólicos em tratamento na Associação Picapau já não têm família à espera
A Associação Picapau localizada na Póvoa da Isenta, Santarém não só apoia pessoas em situações de vulnerabilidade no âmbito dos consumos nas suas instalações por períodos de seis meses a um ano, mas também aos sem abrigo que vivem na cidade de Santarém ou na de Almeirim. Alfredo Calado, presidente da instituição, dá conta que há um número considerável de pessoas a viverem em casas abandonadas, muitas delas também novos imigrantes. São acompanhadas pelas denominadas equipas de rua. Já no interior da instituição o paradigma tem vindo a mudar, se nos anos 90 quando começou a funcionar os utentes eram na sua maioria jovens toxicodependentes, hoje são maioritariamente pessoas com mais idade com dependência de álcool, muitas tinham família e uma vida que foi estruturada até determinada altura.

“Também na cidade de Santarém percebemos que o número de sem abrigo está mais dependente do álcool do que da droga, e penso que este é um padrão que também encontramos noutras partes do país”, refere Alfredo Calado que salienta locais como a entrada do supermercado Mini-Preço na cidade scalabitana, ou os vários jardins da terra, onde os consumos de álcool se fazem a céu aberto. A equipa da associação que anda na rua vai tentando ajudar estes cidadãos muitos deles em contexto de solidão. Por outro lado e quanto aos toxicodependentes que vivem na rua –“São pessoas que consomem há muito tempo, que não querem tratamento, que vão ao CAT e tomam metadona.”
É um mundo às claras de adições que se vê aqui e ali em Santarém. Pessoas que vivem dependentes da caridade e que são aconchegadas por diversas instituições que lhes fornecem refeições quentes.
Já na Associação Picapau são apoiadas 25 pessoas num total de 33 vagas, vindas de várias partes da região e do país. E novamente a mudança de perfil- “Temos aqui pessoas de 60 anos viciadas no álcool, o que não acontecia se formos recuar no tempo, por exemplo, há 10 anos”.
“Trata-se de uma adição, em que uma pessoa pode andar anos e anos a consumir álcool sem trazer danos muito gravosos, demorando-se mais tempo até se atingir uma situação grave. Aqui estamos a falar de pessoas em que muitas já não têm contato com a família, e que acabam por ter de vir para uma instituição”,
Quanto ao modelo de recuperação do dependente, implantado na associação, passa por “uma aprendizagem sobre si próprio, com espaço de reuniões e de reflexão. “Tem de existir aqui alguma capacidade da pessoa olhar para ela”. Ao longo do dia, os utentes participam de todo o tipo de tarefas domésticas essenciais para a organização da vida na quinta onde se localiza a associação. Há roupa para lavar, comida para preparar e têm de ser também responsáveis pelos animais da quinta. Depois o dia é passado em várias dinâmicas de grupo de reflexão sobre comportamentos, sentimentos e tudo aquilo que possa contribuir para a mudança interior de cada um. “Desde o momento em que entram até que saem fazem dezenas de trabalhos escritos”, exemplifica. As equipas de profissionais à sua disposição passam essencialmente por psicólogos e cada um tem o que se designa por “conselheiro”, que normalmente é um adito que está em recuperação há mais tempo. Existe ainda uma técnica de serviço social e outros elementos de apoio à quinta para além da direção.
O tratamento é de seis meses a um ano. “Nunca usamos a palavra cura. O que aprendem aqui, sobretudo, é que possuem uma doença crónica e damos as ferramentas para conseguirem lidar com ela”. Alfredo Calado confessa que atualmente torna-se mais difícil tratar os utentes porque acabam por ser mais refratários à necessidade de mudança nas suas vidas. Os apelos do mundo exterior são em maior número e não raras vezes há quem saia da instituição e ande a deambular pela cidade de Santarém. “Depois ligam muito aflitos para os irmos buscar”, exemplifica, referindo que os utentes com dependência de álcool são um grande desafio. “São pessoas com mais idade, mais orgulhosas”.
Casos de sucesso na associação surgem por parte de quem menos se espera
Quando isso não acontece vão à Santa Casa da Misericórdia de Santarém “e conseguem logo alimentação, ou a Cruz Vermelha dá-lhes dinheiro para pagarem um bilhete de transporte para casa. E assim conseguem ir mantendo o vício”. Há vários casos de reincidência na associação, mas também de sucesso e “por vezes de onde menos se espera. Pessoas que achamos que têm poucas ferramentas, mas que conseguem refazer as suas vidas”.
Na associação o utente não tem visitas, apenas são permitidos telefonemas de alguns minutos ou videochamadas, “porque alguns têm filhos pequenos e estão autorizados, mas apenas com a família mais próxima”. Apenas podem contactar a família nas suas saídas à rua, e devidamente acompanhados por técnicos da instituição.
Este tipo de comunidades terapêuticas enfrenta diversas dificuldades no seu dia-a-dia. Nesta altura passaram a estar dependentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT) através do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), quando antes estavam adstritas ao Instituto da Droga e Toxicodependência. A verba que o Estado dá por utente é de 720 euros mais 180 que cada um ou respetiva família tem de despender do seu bolso. Se assim não puder ser, a Segurança Social encarrega-se desse valor, mas “sempre com muitos atrasos” – “A verba que o Estado nos dá quase não chega para nada”. O valor é praticamente igual ao que já era há 15 anos, de acordo com o diretor da Picapau.

Ricardo Carvalho: “Tinha mesmo de pedir ajuda, porque estava num ponto em que, não sei, se calhar ainda me atirava para a linha do comboio”.
Ricardo Carvalho está na Associação Picapau desde março do ano passado. Com 47 anos já tem um longo período de consumos que foram interrompidos, espaçadamente, quando a vida se tornou mais feliz em alguns momentos, como quando teve o seu filho. Quando mais jovem abraçou as drogas. Com facilidade adquiria heroína perto de casa, no bairro das Marianas, em Carcavelos, “muito conhecido nos anos 90”. Era aí que comprava droga ou então em São João do Estoril no Bairro do Fim do Mundo. Ainda fez um tratamento, mas apenas aos 20 anos deixou a droga para nunca mais voltar. Chegou a passar por uma comunidade terapêutica em Cascais, mas abandonou. Na altura ainda não havia a metadona que acabou por revolucionar os consumos, introduzida em Portugal em 1998. Agora a batalha é a do álcool, em que o grande problema passa pela sua “romantização” pela sociedade, diz-nos. “Mas eu já fiz coisas muito más, embriagado, que nunca fiz quando estava dependente das drogas”
Foi quando regressou, em 2019, da Inglaterra onde esteve a trabalhar como carpinteiro de cofragem para ser operado em Portugal é que tudo começou no álcool, porque até aí não consumia bebidas alcoólicas por aí além. “Lembro-me que quando estava a trabalhar no estrangeiro uma box de 5 litros de vinho Dona Ermelinda dava para três semanas. Principalmente só bebia à noite”. Dentro de duas semanas ficará alojado num apartamento da associação em Santarém que corresponde ao último passo no processo de desintoxicação. “Depois quero arranjar a minha vida aqui por perto, não vou voltar para Cascais”. Confiante acredita que conseguiu mudar graças a esta comunidade terapêutica onde veio a conhecer outros casos muito semelhantes ao seu, de quem enveredou pelo álcool numa fase mais avançada da vida. “Acho que vou conseguir proteger-me mudando de área geográfica”. Para trás, espera, vão ficar os dias, imediatamente antes de ter vindo para Santarém, onde pernoitava nas ruas de Cascais, junto à GNR de Carcavelos, ou em edifícios devolutos “sempre com medo que chegasse alguém e me batesse”.
No seu regresso a Portugal depois da passagem pela Inglaterra, teve dificuldade em encontrar um rumo para a sua vida. A viver na casa da mãe e com o vício da bebida instalado, rapidamente começou a ter problemas de comportamento que levaram a que a mãe o colocasse fora de casa. Mas orgulha-se de nunca ter andado com armas brancas ou de arremesso e de não ter roubado para arranjar droga, nas suas palavras. “Preferia pedir dinheiro ao pé da porta do Pingo Doce, antes de receber o rendimento de inserção”.
Apesar de ter trazido um pé-de-meia de Inglaterra, rapidamente o dinheiro esgotou-se. Nos últimos tempos do vício consumia por dia três garrafas de 7,5 dl “e ainda bebia mais umas cervejas ou uns copos de vinho na rua”. “Ao fim de dois anos já não tinha dinheiro e era a minha mãe que patrocinava as minhas despesas. Ela fez ontem 70 anos, não pude dar-lhe os parabéns. Infelizmente tratei-a muito mal.”
Quando perguntamos a Ricardo Carvalho o porquê de ter entrado nesta roda-viva de consumos e de degradação da sua vida, acredita que foi por orgulho e porque não quis pedir ajuda. “Deixei-me andar, sabia que tinha de procurar ajuda, mas não tentei. Cada vez entrava mais naquela espiral negativa, e num dia isto culminou com mais uma discussão com a minha mãe em que lhe dei uma chapada na mão e o telefone voou. A minha mãe e uma prima minha zelavam pelo meu bem-estar e davam-me bons conselhos, mas eu permanecia de mente fechada e a negar um pouco os conselhos que me davam. Obviamente que isto acabou num processo judicial”. Conta que ainda andou de pulseira eletrónica e chegou à associação porque precisava de tratamento urgente. “Tinha mesmo de pedir ajuda, porque estava num ponto em que, não sei, se calhar ainda me atirava para a linha do comboio”.
“Evitar o álcool é um trabalho para o resto da vida”
Antes de ter vindo para esta comunidade terapêutica no concelho de Santarém ainda esteve numa outra em Sintra, mas segundo Ricardo Carvalho possuía regras demasiado rigorosas – “Havia dias específicos para se lavar a roupa por exemplo”.
Hoje, passado quase um ano, sonha com o dia em que vai estar de novo com a mãe e pedir-lhe desculpa cara a cara. Evitar o álcool a todo o custo “é um trabalho para o resto da vida”.
Na sociedade as drogas e o álcool podem ter sempre muitas conotações injustas, especialmente no caso do segundo que “é uma droga social”. “O álcool confere status social. Num bom restaurante se pedir um Pêra Manca Branco e beber duas garrafas é porque tem dinheiro, não é porque é alcoólico ou bêbedo. Se consumir numa noite 10 gramas de cocaína é porque é um ‘ganda maluco’, estilo ator de teatro ou um cantor da moda, mas se for heroína já é um agarrado ou um carocho”. “É um pouco essa a perceção que as pessoas têm, mas é tudo mais do mesmo, é tudo igual. Acho que a pior das drogas é mesmo o álcool. Eu nunca vi ninguém, depois de fumar um charro chegar a casa, agarrar na caçadeira, matar a mulher, os filhos e a sogra, ou depois de consumir heroína, fazer exatamente o mesmo. Mas no álcool vemos regularmente cenas de ciúmes, facadas, marteladas a sangue-frio, crimes de sangue, cara a cara. Com o álcool sentia necessidade de agredir alguém, que não sentia quando estava sóbrio”. Ricardo Carvalho conta que nunca agrediu fisicamente a mãe, mas tinha vontade de “despedaçar as pessoas, muitas que nunca me fizeram mal”.
“Quando era adolescente, não era costume consumir-se álcool como hoje acontece”
Depois de um ano na Associação Picapau, aprendeu a ser mais humilde, e a trabalhar também as suas qualidades, mas também os sentimentos de raiva, de angústia e de impotência, nas várias partilhas e grupos de apoio e de reflexão que todos os dias são promovidos neste centro comunitário. “Porque sei que tenho algo de bom dentro de mim. Já tive vários episódios em que podia ter saído daqui, e estou cá. Como podia ter acontecido uma fatalidade nas casas velhas onde dormia, como regarem-me com gasolina, ou mandarem-me uns pedregulhos para cima e matarem-me. Porque há muitos miúdos novos que fazem mal a pessoas que vivem em casas velhas. Nada disso aconteceu. Portanto, dou graças a algo superior que sempre me acompanhou”.
A adição, diz, é “uma doença de sentimentos”. “Nas primeiras partilhas, quando começamos a falar de sentimentos é uma confusão na nossa cabeça, porque começamos a abrir as gavetinhas de todos os episódios que aconteceram na nossa vida. Existem muitos que estão aqui há um ano e ainda não conseguem confiar porque têm muitos fantasmas ainda lá dentro e não querem abrir o jogo.”
Quando sair espera honrar a memória do pai que já morreu e não ter recaídas. “Consegui com as drogas e penso que também vou vencer de novo. Protegi-me aos vinte anos quando o meu filho nasceu e desta vez vou voltar a conseguir”. A vida e as oportunidades estão a poucos dias de acontecer – “Não sou introvertido. Gosto de novos desafios e já trabalhei em várias áreas”. Ricardo Carvalho salienta o papel destas comunidades de tratamento que são uma fonte constante de aprendizagem sobre o indivíduo- “Se calhar, há muitas pessoas que levam a sua vida lá fora que precisavam de um tratamento destes não porque sejam aditas, mas porque têm graves distúrbios de personalidade e de caráter”.
O consumo de álcool é cada vez mais um hábito social e cultural – “Faz-se uma grande festa à volta do mercado dos vinhos e muitas pessoas acabam por se alcoolizar, não é? Desnecessariamente. Começam por se alcoolizar ao fim de semana ou uma vez por semana. Mas não é preciso muito para se criar uma dependência grave e ir conduzir sob o efeito da bebida. Um carro é como um míssil. Temos muitos casos de pessoas alcoolizadas no nosso país que mataram e não cumpriram pena efetiva. Isto é homicídio por negligência”.
A adição à bebida é um flagelo crescente entre os jovens, mas Ricardo ainda se lembra que quando era mais novo que beber não figurava nos consumos dos jovens. “Quando era adolescente, estou a falar nos anos 90, grande parte dos meus amigos não consumiam álcool, e estou a falar de centenas de pessoas, amigos de Cascais, de Oeiras, do Estoril, de Caxias, e atualmente vejo adolescentes com 13, 14 anos irem ao Pingo Doce e comprarem vinho branco e vinho verde. Muitos com essa idade também já consomem cocaína e cristal e outras drogas sintéticas com ainda mais efeitos secundários do que as outras”.

Isabel Nunes: “Levava álcool para o trabalho dentro de garrafinhas de água”
Com 51 anos, Isabel Nunes, da Marinha Grande, passou grande parte da vida dependente primeiro das drogas e nos últimos anos do álcool. Esta já é a terceira vez que está na Associação Picapau. A primeira vez foi há 25 anos, a segunda há cinco, e desta vez já faz quatro meses que tenta mais uma recuperação. “A primeira vez que vim foi por causa da heroína. Consumia muito”. Mesmo adita conseguiu alguns empregos ao longo da vida. Conta que é oriunda de famílias com boas vidas financeiras da Marinha Grande. Ainda se lembra de ir trabalhar para uma fábrica “às sete ou oito da manhã e uma hora e meia antes passava pela casa de um rapaz onde ia consumir”. Desta vez está neste centro comunitário devido ao álcool. Antes de entrar conta que conseguia despejar num só dia duas garrafas de moscatel de 7,5 dl.
No início da sua adição ainda aos 20 anos lembra que era uma rapariga bonita que andava de carro descapotável, um MG5 Cabriolet, mas cedo foi seduzida pelas drogas. “Só queria consumir, almoçar e dormir”. Começou a trabalhar aos 30 anos. Destaca um emprego que teve na biblioteca da terra, na La Redoute, e mais recentemente numa indústria local. Na revista de compra de roupas, chegou a ser “a melhor no quadro”, mas foi “despedida por faltas”. Já era a toxicodependência.
Isabel Nunes ainda vive com os pais. Foi visitar três centros do mesmo tipo do da Associação Picapau com o pai quando optou por este centro há 25 anos. Na primeira vez esteve 9 meses, na segunda foram menos meses. Rapidamente voltou à droga e ao álcool. Mas nesta altura apenas tem o vício da bebida. “Deixei a droga, entretanto, porque no Centro de Apoio à Toxicodependência disseram que me iam tirar a metadona. Fiquei com medo”. Este foi o mote para deixar uma dependência, mas a vontade de beber ainda aumentou mais como que para compensar. “Comecei a consumir à noite até que cheguei ao ponto de levar álcool para o trabalho dentro de garrafas de água. Aquelas garrafas que são mais opacas”. Nunca parou para pensar muito quando começou a ganhar o vício da bebida- “Apenas queria consumir e fazia-o”. “É pior o álcool do que a droga. Com o álcool nunca fiz coisas como fiz com a droga.”
Isabel Nunes quer acreditar que desta vez é mesmo para valer e não sucumbirá aos apelos do álcool. “Tenho de conseguir. Preciso e vou conseguir. Eu aqui aprendi com a partilha de um colega que tenho de encarar o álcool como petróleo, como se fosse algo tóxico”.
Apesar de estar na comunidade há pouco tempo, diz que quando chegou estava muito acima do peso ideal e com a face inchada. Chegou ao ponto de ter descurado a higiene, e de não fazer nada. Em dez anos de trabalho, oito foram de baixas consecutivas.
“Gosto de estar aqui, de ter vindo para aqui de todas as vezes em que tentei recuperar dos vícios, porque são atenciosos com a gente. Preciso de me integrar novamente na sociedade, porque estava fechada em casa, só a beber, ia dormir sob o efeito de comprimidos porque não sabia lidar com os tempos mortos. Não trabalhava, não conseguia andar sequer. Então vim para aqui sem andar, sem ver, não conseguia escrever em cima da linha azul dos cadernos. Agora já sei escrever. Estou muito mudada, muito diferente.”
A dada altura começou a consumir álcool de manhã
Para chegar ao estado de degradação em que se encontrava foi um processo, segundo a qual, teve início com o gosto por beber esporadicamente. “Depois comecei, a dada altura, a beber todos os dias, seguidamente de manhã. Quando dei por mim andava sempre com uma garrafa daquelas de água pequeninas enchidas com álcool dentro da carteira para beber, fosse para onde fosse, para o hospital, fosse para o café, ia à casa de banho beber e estava sempre a beber. E era mesmo por gosto”.
Com 51 anos, as dependências tomaram conta de grande parte da sua vida, e vergonha é o sentimento que diz carregar. “Não posso mesmo beber, por mim, pela minha família, tenho de aceitar que tenho uma doença. Deixei a droga e andava muito agarrada. Gostava muito da droga. E consegui. Espero conseguir também.”
Isabel Nunes deixa um conselho a quem possa já ter caído no mundo das adições- “Temos de pedir ajuda, porque esta é uma doença matreira e perigosa Temos de ter vontade de pensar no dia em que estamos e que queremos mudar isso e que não vale a pena desperdiçar a vida”.