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Passinha: quando uma aldeia inteira é esmagada por um corredor de camiões

Na Passinha já ninguém fala de qualidade de vida. Fala-se de resistência. À entrada da localidade, o silêncio que em tempos fez desta borda da freguesia de Alenquer, um lugar discreto entre vinhas e quintas deu lugar a um corrupio de camiões de uma das maiores empresas de logística do país. A Santos e Vale ergueu o seu megacentro praticamente encostado às casas. O resultado está à vista: ruas estreitas transformadas em corredor obrigatório de pesados, noites partidas em pedaços e uma população exausta que sente que foi empurrada para o papel de dano colateral do negócio.

Alberto Silva, vamos chamar-lhe assim, conhece de cor cada buraco do alcatrão e cada racha nas paredes. Parece-lhe impensável que um hub logístico como o da Santos e Vale possa ter aterrado no meio de um aglomerado habitacional e fazer depender o seu funcionamento da passagem diária e noturna de centenas de camiões por ruas que nunca foram desenhadas para o efeito.

Enquanto caminhamos, aponta para os muros feridos como quem percorre um relatório de danos. Fala de hectares de vinha arrancados para dar lugar a betão e naves industriais, questiona o modelo de desenvolvimento que entrega às empresas os terrenos baratos junto à autoestrada e deixa às populações o barulho, a trepidação e o medo.

Na Rua dos Bons Amigos, a população estreitou laços ao viver uma agonia comum

O passeio pela Rua dos Bons Amigos e artérias vizinhas é um inventário sucessivo de choques. Placas de trânsito riscadas pelos reboques, cantos de muros esfarelados, postes de telefone vergados, valetas destruídas. À medida que avançamos, Alberto soma números que dificilmente se encaixam na paisagem: num período em que a circulação deveria estar limitada a 20 camiões por dia, os moradores chegaram a contar 150 pesados. Agora, com circulação a qualquer hora, fala em cerca de 500 passagens em 24 horas. Em tribunal, a Santos e Vale procurou minimizar o impacto, mas para quem aqui vive a conta faz-se de outra forma. Cada passagem é um solavanco, um sobressalto, um despertar.

A história da sinalização explica parte da revolta. Desde 1992 que a estrada que liga a Passinha à envolvente estava interdita a pesados. Um sinal à entrada proibia o trânsito de camiões. O sinal desapareceu há cerca de um ano. Foi arrancado. Nunca mais foi reposto, apesar das denúncias à Câmara. A partir daí, a Passinha passou a ser oficialmente o atalho perfeito para fugir ao trânsito da estrada principal. Os motoristas entram sem serem avisados de qualquer proibição. Para a Santos e Vale, o caminho abriu-se de forma conveniente. Para os moradores, foi como se alguém tivesse levantado uma cancela invisível sobre as suas vidas.

A vida neste pedaço de território tornou-se insuportável

Se o conflito fosse apenas com o ruído e com as rachas talvez fosse mais fácil encontrar um ponto de equilíbrio. Mas o que se instalou na Passinha foi também uma guerra de nervos entre moradores e camionistas ao serviço da Santos e Vale e de outras empresas que aproveitam o mesmo corredor. A certa altura já ninguém finge que não vê ninguém. Há olhares trocados, gestos, gritos, discussões no meio da rua. Há moradores que tentam explicar, pedir que abrande, que respeite a proximidade das casas. Há motoristas que respondem com acelerações, buzinadelas e gestos provocatórios.

Rosa Silva, moradora numa casa baixa colada à estrada, tem sido uma das que mais enfrenta esta fronteira invisível. Cansou-se de esperar por milagres e transformou as janelas do quarto em barricada. Pendura colchões e mantas, prende vasos pesados junto à parede. Não é decoração. É defesa. “Já me mandaram isto abaixo duas ou três vezes, mas pelo menos assim não encostam logo à janela”, conta. Quando sai à rua e tenta pedir que abrandem, muitos riem-se, acenam com o farol, aceleram mais um pouco, como se fosse um desafio.

Rosa Silva mostra-nos imagens de peças que se soltam
dos camiões

A falta de solidariedade de parte dos camionistas, sobretudo durante a noite, é uma ferida aberta para quem aqui vive. Os moradores reconhecem que há exceções, condutores que passam devagar, quase em silêncio, a cumprir o serviço com o mínimo de impacto possível. Mas dizem que são poucos. “Em dez, dois passam devagar. Os outros nove fazem desta rua uma pista. Apitam, falam uns com os outros em altos berros, travam e arrancam em cima das nossas camas”, descreve uma moradora. Muitas vezes, quando alguém se coloca ao meio da estrada para tentar obrigar a abrandar, a resposta é um roncar mais forte do motor.

O Valor Local presenciou garrafas de urina nas valetas, alegadamente atiradas por camionistas

Há episódios que ficam como marcas profundas na memória da população. Garrafas de urina atiradas das cabines para as valetas, para terrenos e jardins, como se a rua fosse um prolongamento do parque de estacionamento da empresa. Beatas e maços de tabaco vazios largados à porta das casas. Piretes. Comentários trocistas. Situações em que, depois de um desentendimento, na noite seguinte aparecem novas garrafas de urina deixadas em pontos específicos, quase como um recado. O gesto é pequeno, mas para quem já vive no limite é mais um sinal de desrespeito e desumanização.

É neste ambiente que se multiplicam as discussões. Motoristas que saem da cabine para contestar os protestos dos moradores. Vizinhos exasperados que respondem em igual tom. Foram já reportadas situações de agressão física, insultos e intimidação, com queixas apresentadas à GNR. O que começou por ser um conflito entre uma população e uma empresa de logística transformou-se, na prática, num confronto diário entre pessoas que estão de ambos os lados da mesma moeda: de um lado, quem é pago para cumprir horários e rotas rígidas; do outro, quem só quer dormir e atravessar a rua sem medo de ser colhido por um TIR.

Dentro de casa, o conflito toma a forma de noites intermináveis. Rosa conta que raramente consegue dormir uma hora seguida. Vai-se deitando cada vez mais cedo para tentar acumular algum descanso antes da onda mais intensa. A cama vibra sempre que um camião passa depressa demais, os vidros tremem, o corpo sobressalta-se. As paredes da casa, recentemente pintadas, estão novamente cheias de rachas. No exterior, fileiras de vasos não têm só função estética. São barreira para travar camiões que, em manobras apertadas, se encostam demasiado. “Já me mandaram isto abaixo duas ou três vezes”, diz, apontando para a proteção improvisada. A certa altura, Rosa deixa escapar o medo que lhe ocupa o pensamento: “Um dia ainda me entra um camião pelo quarto dentro.” Não o diz como metáfora. Diz como possibilidade real.

Deixou de conseguir aguentar um emprego normal. A medicação para dormir pouco ou nada resolve quando as rodas dos pesados levantam a casa de meia em meia hora. Outras vizinhas e vizinhos admitem estar medicados com ansiolíticos e antidepressivos. Em quase todas as casas alguém toma comprimidos para tentar compensar o que se perdeu com o barulho.

Alberto mostra-nos a fotografia do filho depois de um desses momentos de pânico. O miúdo, assustado com dois camiões que se cruzavam na rua estreita quando ia apenas levar o lixo, atirou-se instintivamente contra o muro. Evitou o atropelamento, mas saiu do episódio com o nariz ferido e o medo colado ao corpo. “O que é que eu faço? Meto a Santos e Vale em tribunal? Meto o motorista? Ou ensino o meu filho a ter medo de sair de casa?”, pergunta o pai, entre a revolta e a resignação.

Há também quem se defenda com aquilo que tem à mão. Um vizinho optou por estacionar permanentemente o carro à frente do portão, para servir de escudo entre a casa e a passagem dos camiões. Em outro caso, o proprietário cravou um pino no meio de um pequeno jardim para impedir que as rodas dos pesados voltassem a rebentar o cano de água que abastece a casa, já reparado três vezes. A criatividade na autodefesa só evidencia o vazio do lado de quem deveria garantir condições mínimas: o Estado e o município.

Numa oficina ao lado os trabalhadores corroboram as histórias dos moradores

Casimiro Carvalho, ex-camionista e empregado numa oficina à beira da estrada, olha para esta realidade a partir dos dois lados. Sabe o que é conduzir pesados sob pressão de horários e sabe o que é estar no lado de quem vê e ouve os camiões passar, dia após dia. Descreve o barulho das “banheiras da pedra” e das galeras vazias a saltar sobre os buracos como “uma trovoada constante” que se arrasta ao longo de toda a rua. Reconhece que há motoristas que passam a velocidade moderada, mas não esconde que muitos outros circulam como se esta fosse uma via rápida. “Esta estrada não está preparada para isto. Quando se cruzam, têm de se encostar às paredes. As casas não foram feitas para aguentar 40 toneladas a passarem encostadas ao muro”, resume.

Pesadelo começou na Passinha, passou para os Casais Novos e regressou à Passinha

Até à primeira providência cautelar, a Santos e Vale circulava também durante a noite pelo interior da Passinha. O tribunal obrigou a limitar as passagens e a recuar nos horários, abrindo uma pequena janela de descanso. A empresa desviou parte do tráfego para Casais Novos, onde os moradores acabaram por vencer também em tribunal, obrigando a restringir de novo a circulação. Volvidos meses, o cenário acabou por voltar quase ao ponto de partida na Passinha. É aqui que hoje se concentra o impacto mais visível do conflito.

Esta não é a primeira vez que a população destas duas localidades leva o caso à praça pública. Meses antes desta reportagem, cerca de cinquenta moradores juntaram-se a convite do Valor Local para contar, em conjunto, o que têm vivido desde 2021. Um texto que recordava os 1175 dias de “puro sofrimento” deu conta das ações em tribunal, das decisões que restringiram o trânsito da Santos e Vale, das dúvidas em torno dos estudos de tráfego e da polémica em torno da alteração do Plano Diretor Municipal que ameaça transformar mais solo agrícola em zona industrial.

Uma comunidade cansada e dividida que só consegue sobreviver a noites sem dormir a tomar comprimidos

Agora, ao voltarmos ao terreno, encontramos uma comunidade ainda mais cansada e dividida entre a vontade de continuar a lutar e a tentação de vender a casa e recomeçar noutro lugar. Há quem já tenha posto o imóvel à venda. Há quem diga que nunca o fará por princípio. Há quem viva suspenso da promessa da tal estrada alternativa pela Quinta da Telhada, que tarda em passar do papel às máquinas.

No meio de tudo isto, o nome da empresa repete-se em quase todas as conversas. A Santos e Vale é citada como epicentro do problema: pela escala da operação, pela localização escolhida, pela forma como o tráfego foi canalizado, pela ausência de diálogo direto com as populações. Em tribunal, a empresa alegou que as limitações ao trânsito lhe trariam prejuízos económicos e perda de postos de trabalho. O tribunal, no entanto, não deu razão à Santos e Vale em vários pontos fundamentais e considerou provado o impacto negativo da circulação sobre as populações. Já junto dos moradores da Passinha, a empresa nunca se sentou. Para muitos, a sensação é de que a Santos e Vale se esconde atrás das naves e dos camiões, deixando a linha da frente entregue aos motoristas e à polícia.

O Valor Local solicitou esclarecimentos à Santos e Vale sobre o conflito em curso, o impacto da sua operação na Passinha e em Casais Novos e as soluções que está disponível para apoiar, aguardando resposta. Até lá, o que fica desta visita é um retrato mais nítido da fratura que se abriu entre quem vive e quem passa, entre quem tenta descansar e quem tenta cumprir horários, entre uma empresa que cresce e uma aldeia que se sente encolher.

Na Passinha, o sofrimento tem muitas formas: são as paredes rachadas, os degraus partidos, os copos que vibram nas prateleiras, as garrafas de urina atiradas para as valetas, os miúdos que já não vão sozinhos levar o lixo, os empregos perdidos porque alguém deixou de conseguir dormir, as discussões à porta entre moradores e camionistas, os comprimidos para apaziguar o que a trepidação não deixa acalmar. Entre promessas de estrada alternativa, sentenças de tribunal e revisões de planos, a vida continua a passar devagar para quem não dorme. Já os TIR da Santos e Vale continuam a passar depressa. E, para quem vive aqui, essa é a maior prova de que, até agora, ninguém quis verdadeiramente travar.

João Nicolau compromete-se a resolver o tema da estrada alternativa o mais depressa possível

João Nicolau garante prioridade máxima à estrada alternativa na Passinha

O novo presidente da Câmara de Alenquer, João Nicolau, afirma que a construção da estrada alternativa à Rua dos Bons Amigos, na Passinha, é uma prioridade absoluta do executivo. Apesar de ainda não existir um calendário fechado para o avanço da obra, o autarca assegura que os serviços municipais estão a agilizar todos os procedimentos necessários para que o concurso público seja lançado “o mais depressa possível”. Segundo diz, existe até a possibilidade — embora sem garantia — de o processo avançar ainda este ano.

João Nicolau recorda que a empreitada está sujeita às etapas formais da contratação pública, o que condiciona a rapidez desejada pela população. Ainda assim, garante que a orientação interna é clara: “adiantar tudo o que for possível para resolver um constrangimento que dura há demasiado tempo”.

Enquanto a solução definitiva não chega, a Câmara admite que as opções no terreno são limitadas. O presidente afasta a hipótese de lombas, por entender que agravariam o ruído e a trepidação sentida durante a noite. A autarquia compromete-se, no entanto, a reforçar a fiscalização do cumprimento das restrições de trânsito para pesados, nomeadamente horários e ruas assinaladas. A Polícia Municipal poderá ter uma presença acrescida na zona para garantir que as regras são cumpridas.

Sobre a relação com a Santos e Vale, empresa apontada pelos moradores como principal responsável pela circulação de pesados, João Nicolau confirma que será marcada uma reunião em breve. Quer perceber o que ficou acordado no mandato anterior e avaliar de que forma a empresa poderá participar na solução da nova via. “A estrada não é feita para a Santos e Vale. É uma via pública, com utilidade geral, e que servirá sobretudo para separar o trânsito industrial das áreas habitacionais”, sublinha.

O autarca mostra-se surpreendido com relatos de comportamentos incorretos por parte de alguns motoristas — desde velocidade excessiva a situações de incivilidade. “Não tinha conhecimento desses episódios. Se existirem, serão obviamente assinalados, porque todos devem respeito às zonas habitacionais”, afirma.

“Vou ser totalmente transparente em relação a este processo”

Quanto às críticas de falta de transparência dirigidas à Câmara ao longo dos últimos anos, João Nicolau rejeita a ideia. Diz que acompanhou o processo enquanto deputado municipal e que não viu sinais de ocultação. Garante que, no seu mandato, manterá o mesmo compromisso: “transparência total sobre o estado dos processos e sobre aquilo que pretendemos fazer”. Reconhece, no entanto, que os timings administrativos nem sempre correspondem às expectativas das populações.

Sobre eventuais compensações futuras às famílias que vivem há anos com noites sem descanso e forte impacto na qualidade de vida, diz que essa hipótese “nunca foi colocada em cima da mesa” e não está prevista.

O Valor Local pediu à Santos e Vale para prestar declarações sobre este tema, mas não obtivemos resposta.

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