Ao vermos as cheias de Valência podemos perguntar- nos: E se fosse cá? A proximidade ao Tejo deixa receios, mas mais importante do que prepararmo-nos para um evento meteorológico raro, é importante refletir sobre como ganhar cada vez mais resiliência perante as inundações que as alterações climáticas vão provocando. Em algumas áreas daquela província espanhola, choveu o equivalente a um ano, em apenas 8 horas. A Agência Estatal de Meteorologia de Espanha afirmava que na zona de Xica, em Valência, acumularam-se 491 litros por metro quadrado em 8 horas. Semanas depois do fenómeno “gota fria”, como também é apelidado, fica este número para a história: 225 mortos.
A Rádio Valor Local levou a cabo no dia 13 de novembro uma emissão especial onde juntámos autarcas e especialistas, e outros conhecedores do terreno. Pedro Cardoso foi comandante dos Bombeiros Voluntários de Azambuja e responsável da proteção civil municipal, e enfrentou alguns dos piores cenários de cheias no Ribatejo. Durante a nossa emissão especial, deu conta que a construção de barragens ao longo do Tejo que serviram para amenizar os cenários de cheias, até porque alturas houve de sete cheias por ano. “Agora conseguimos prever a hora da chegada da cheia ao campo de Azambuja, porque os caudais passaram a ser controlados”. Contudo as cheias rápidas são mais difíceis de prever quanto ao seu comportamento em meio urbano, como de resto sucedeu em Espanha, mas no “nosso caso ficamos, frequentemente, com a baixa de Azambuja inundada”.
Pedro Cardoso ainda se lembra de quando havia as grandes cheias no Tejo de andar a retirar gado do campo com recurso a um navio da marinha.
No caso de suceder um cenário semelhante ao de Valência, opina que seria inimaginável esse quadro. “O problema não se resume apenas à água, mas também aos detritos, até porque viriam desaguar aqui enxurradas provenientes da Serra de Montejunto e com bastante violência. Possivelmente nem se conseguiria colocar no terreno os meios de socorro, porque a zona do quartel dos bombeiros ficava logo inundada”, descreve ao mesmo tempo que opina que os comunicados à população que falharam em Valência podiam fazer toda a diferença no sentido de se evitarem males maiores.
“Com frequência existem alertas de mau tempo que depois não se efetivam, e as pessoas passam a não os ter em conta, mas Valência é um caso paradigmático de que devemos aprender que quando há um alerta, devemos permanecer atentos. Se temos um alerta vamos criar condições para que, pelo menos, as vidas humanas possam ser salvas.”
O antigo comandante considerou também, durante a nossa emissão, que de certa forma se abusa um pouco do chavão das alterações climáticas, “quando estamos a falar de fenómenos que aconteceram sempre de forma cíclica”. Os municípios são dotados de planos municipais de emergência e de cheias, replicados a nível distrital e nacional. Pedro Cardoso identifica uma das principais zonas mais sensíveis do concelho de Azambuja, “na Várzea em Vila Nova da Rainha sempre que o talude cede e se cruzam o rio de Alenquer com o da Ota”. O mesmo acontece na Ribeira do Valverde sempre que há maré cheia.
O tempo das 7 cheias por ano
O antigo comandante lamenta ainda a falta de intervenção das entidades do Estado no Tejo, especialmente tendo em linha de conta o assoreamento do caudal do rio Tejo. Pedro Cardoso lembra-se de uma intervenção no talude do Alqueidão há cerca de 10 anos, quando se geraram ondas de vários metros e se deu um rombo naquela estrutura. O talude de suporte de cheias em Valada é uma das localizações sensíveis que não tem sofrido qualquer tipo de manutenção, na sua opinião. A estrutura está à mercê da ação dos animais e “quando houver uma cheia maior podemos ter algumas surpresas indesejáveis”.
Durante a nossa emissão, ouvimos a voz da sabedoria popular através do avieiro João Lobo, conhecedor do Tejo desde sempre. Com o aparecimento de cada vez mais barragens ao longo do rio, uma coisa é certa: as cheias já não são o que eram. “Tenho 65 anos. Fui criado no rio desde miúdo e ainda sou do tempo em que tínhamos sete cheias por ano. Era uma chatice. Alagavam os campos de Almeirim, Azambuja, Alpiarça, mas coordenados com os espanhóis as coisas não têm corrido mal na altura de se abrirem as comportas.”
Intervenções hidráulicas no Rio Alenquer têm minimizado cheias
A vila de Alenquer é outro exemplo paradigmático no combate às cheias e na memória coletiva ainda estão as de 67 que acabaram por causar várias dezenas de mortos. Seguiram-se várias intervenções hidráulicas no Rio Alenquer o que possibilitou a minimização da ocorrência de cheias no coração da Vila Presépio. “Muito melhorou, lembro-me de em miúdo ver troncos de grande dimensão a passarem no rio. Hoje isso não acontece, mas devemos lembrar-nos que estes episódios têm sempre um ciclo de repetição. Há dias li um artigo curioso acerca de Valência que dizia que o histórico de cheias naquela cidade surgiu antes desta agenda em torno das alterações climáticas.”, deu conta Tiago Pedro, vice-presidente da Câmara, durante a nossa emissão especial. O autarca lembrou que o atual executivo também tem realizado intervenções no rio de que foi exemplo a construção recente de uma rede pluvial dupla.
“Havia uma rede unitária pluvial que vem da zona alta da vila até à zona do Areal, composta por uma galeria que tinha já cerca de 150 anos e que esteve sempre em pleno funcionamento, mas que fazia recolha unitária de esgoto doméstico e de esgoto pluvial. Isso foi separado, criámos duas linhas, portanto, estamos neste momento mais resilientes do que estávamos. É óbvio que quando o nível de pluviosidade tem uma carga tão grande como aquela que vimos em Valência, há poucas coisas que resistam do ponto de vista daquilo que é a ação humana no sentido da sua mitigação. Dificilmente se impede que haja um acidente de grandes proporções. Não há muito a fazer.”
Cheias Rápidas de 2022 trouxeram ensinamentos
No novo PDM que o município espera aprovar, entretanto, e de forma a tornar menos vulneráveis determinadas áreas do concelho, vai ser impedida a construção em zonas ribeirinhas em locais como Ribafria, Espiçandeira, Porto da Luz. Para além disso, “o vereador Paulo Franco tem vindo a fazer um trabalho de mitigação em várias ribeiras do concelho, afluentes do Rio de Alenquer, com a Agência Portuguesa do Ambiente no sentido da diminuição dos perigos de uma mais intensa carga hidráulica”.
Em 2022, várias zonas do concelho sofreram os efeitos de cheias rápidas, deixando isolada por exemplo a localidade de Casal das Balas, devido ao desabamento de uma encosta com a estrada a ficar interdita durante mais de um ano. “Vivemos um longo período de seca, o terreno atingiu a sua máxima capacidade. A precipitação acabou por ser empurrada para as linhas pluviais e fez crescer os caudais dos rios, criando os piores cenários em fase de maré alta”.
Mas o autarca apela ainda a que haja mais sensibilidade por parte das populações, nomeadamente, porque as garantias de limpeza das margens do rio são efetuadas pela Câmara em domínio público, mas os proprietários também o deveriam fazer junto às margens onde são confinantes. “Não tem sido fácil sensibilizar. É complexo porque também decorrem aqui prazos legais e muitas vezes cruzando isso com aquilo que são as intempéries quando há uma coincidência infeliz, as coisas complicam-se.”
Há também “os casos dos proprietários que limpam os terrenos com recurso a terceiros e que acabam por deixar todo o tecido lenhoso canas, material verde, dentro do leito do rio. Isto origina vários problemas, como a proliferação de infestantes, por um lado e por outro lado, acumula-se lixo que em situação de grande precipitação o que traz também grandes complicações àquilo que são as obstruções das vias pluviais e dos canais.”
Recentemente o novo Governo fez aprovar o 2.º ciclo de planeamento dos Planos de Gestão de Risco de Inundação (PGRI) para as regiões hidrográficas do Tejo em Abrantes, e das lagoas do Oeste, entre outras intervenções no Rio Alenquer. Os municípios estão obrigados a implementar medidas de redução das consequências nefastas provocadas pelas cheias. A legislação que consagra estes princípios foi vertida no decreto-lei 115-2010.
Fenómeno pode não estar relacionado com alterações climáticas
Para a meteorologista Patrícia Gomes, a tempestade Dana que se abateu sobre Valência nos últimos dias de outubro e que precipitou a catástrofe dos dias seguintes, pode não estar relacionada diretamente com o fenómeno das alterações climáticas. Seria necessária a sua repetição em anos diferentes para se chegar a esta conclusão. “O que aconteceu em Valência foi uma situação especial. Havia muita energia convectiva acumulada naquele sistema, que sofreu a influência também da temperatura elevada da água do Mediterrâneo, mesmo nesta altura do ano, e, portanto, tudo isso acabou por alimentar as células que surgiram na região de Valência, e que originaram o quadro de precipitação em causa”, descreve.
Questionámos a meteorologista se de alguma forma é possível comprar o que aconteceu em Valência às cheias de 67 que afetaram vários concelhos da nossa região e da Grande Lisboa. Patrícia Gomes refere que as cheias dessa altura tiveram menos precipitação e do ponto de vista do quadro geral do fenómeno também não se pode comparar os dois fenómenos.
A “gota fria”, conhecida como Depressão Isolada em Níveis Altos (DANA), é um fenómeno meteorológico caracterizado por um sistema de baixa pressão que se forma em níveis elevados da troposfera, geralmente entre 5.000 e 10.000 metros de altitude. Este fenómeno ocorre quando uma massa de ar frio se isola e interage com ar mais quente e húmido, resultando em condições atmosféricas instáveis que podem provocar chuvas intensas e tempestades.
Cartaxo limita construção junto às zonas ribeirinhas
O concelho do Cartaxo é segundo o Plano de Combate às Alterações Climáticas da Comunidade Intermunicipal da Leziria do Tejo aquele que pode sofrer mais com o risco de inundações. Ainda recentemente a APA fez publicar um mapa com as 63 áreas de maior risco potencial significativo de inundações em que as margens do Tejo não podiam deixar de figurar.
João Heitor, presidente da Câmara do Cartaxo, durante o nosso especial reiterou que o combate passa pelo ordenamento do território. “Nós já somos fortemente impactados no nosso território e a nova legislação que é recente não será ainda mais condicionadora. Acreditamos que conseguimos ter as nossas populações em segurança e as ajudar nos momentos em que os fenómenos climáticos possam acontecer, porque não estamos livres disso”.
João Heitor considera que as zonas ribeirinhas do concelho já se encontram fortemente blindadas quanto à incidência de novas construções que possam impactar na vulnerabilidade aos fenómenos climáticos. O autarca refere que isso mesmo está salvaguardado nas localidades de Porto de Muge, Valada, Aldeia da Palhota e Reguengo. Por outro lado, “quem vive ali são pessoas que estão bastante familiarizadas com estes fenómenos e que sabem muito bem também lidar com eles”, reflete.
Já noutras zonas do concelho, o município tem apostado na limpeza de linhas de água, das sarjetas e sumidouros. “Quando chegámos ao executivo, tínhamos aqui vários problemas bastante graves de drenagem de águas pluviais, temos vindo a resolvê-los com bastante assertividade, e nos últimos dias o nível de precipitação subiu muito e felizmente não tivemos nenhum problema na cidade nem nas freguesias”, refere, informando ainda que do “ponto de vista do socorro temos os nossos bombeiros preparados, equipados, conhecedores daquilo que é a sua necessidade de intervir nos diferentes cenários não só a nível municipal, mas também no domínio regional porque hoje o socorro é planeado e preparado, tendo em atenção a nossa importância também estratégica e o apoio que podemos dar e receber dos nossos parceiros, dos nossos municípios vizinhos naturalmente.”
Muito falado tem sido o projeto Tejo que prevê a construção de várias estruturas hidráulicas ao longo do curso de água que permitam a irrigação normal dos campos agrícolas, contudo há quem defenda que a ir para a frente poderá causar desequilíbrios ecológicos graves no Tejo. João Heitor considera que pode trazer soluções quanto ao controle da cunha salina do Tejo, mas também da qualidade da água no rio “que serve não só para abastecimento de pessoas mas também para a agricultura”, “Ainda assim é um projeto que estará longe de ser conseguido porque do ponto de vista deste cuidado com a hidráulica, acredito que este acordo que foi agora conseguido entre Portugal e Espanha para eliminar os dias de caudal zero no rio Tejo também é bastante importante para garantir o bom funcionamento do rio e dos ecossistemas”.
Azambuja: Se houvesse uma catástrofe, bombeiros não conseguiam sair do quartel
Ana Coelho, vereadora com o pelouro da Proteção Civil, considera que é uma necessidade premente a construção do novo quarte dos bombeiros, previsto para uma localização na denominada Quinta da Marquesa na entrada norte da vila de Azambuja. Isto porque o quartel atual não fica situado na melhor localização face a um cenário de cheias. No caso de uma cheia como a que sucedeu em Valência, refere que pouco se conseguiria fazer face dada a força com que chegou a todo o lado. “Não há município nenhum no mundo que possa estar preparado para uma situação destas”.
A autarca sublinha que no início de cada ano hidrológico é feito um comunicado para a população e juntas de freguesia sobre as medidas a ter em conta. Por outro lado, e no terreno, a Câmara com a grande obra de asfaltamento em duas das principais artérias da vila, com a retirada dos paralelepípedos, tentou melhorar a capacidade de escoamento da água das chuvas.
“Efetivamente aquilo que nos preocupa, e que nos vai preocupar cada vez mais são estas situações proporcionadas pelas alterações climáticas, nomeadamente, estas cheias rápidas em meio urbano. Não há capacidade de prever como aconteceu em Valência que em oito horas chova aquilo, que deveria chover num ano. E isso é uma preocupação real, porque por mais avisos que haja, essas situações muitas vezes impedem-nos que se consiga atuar em tempo útil.”
No novo PDM que a Câmara espera publicar, entretanto, limitou-se a possibilidade de construção em leito de cheia, em zonas mais suscetíveis de inundação, neste caso em locais no campo junto à estação; na Marquesa e noutros pontos do concelho.
Segundo Ana Coelho, a Câmara tem-se preocupado em proceder à limpeza de linhas de água, à reabilitação dos diques do Tejo, a que se somam ainda intervenções no açude da Vala Real, em parceria com a APA.
A comunicação com os agricultores em caso de cheia é também constante – “Quando temos estas situações de previsão de cheias, entramos em contato no sentido de que se possa abrir as portas de água para circulação da mesma”. A vereadora anuncia que em conjunto com o município de Alenquer está-se a proceder à identificação de todos os proprietários para que se avance com uma ação de limpeza entre os dois concelhos nas margens do Rio Alenquer.
Intervenções permitiram diminuir cheias em Alverca e Alhandra
No concelho de Vila Franca de Xira, a Câmara tem operado diversas transformações no território de forma a conter a impetuosidade das cheias. O presidente da autarquia, Fernando Paulo Ferreira, destaca que se tem apostado na preparação dos territórios urbanos com e melhoria das condições de escoamento urbano que hoje são principalmente sentidas na baixa de Alverca com a minimização da ação de arrastamento de águas a partir das zonas mais altas de Arcena e Bom Sucesso, e em Alhandra, com intervenção na Ribeira de Santo António. Contudo ainda há três anos uma intempérie que causou a queda de um muro de suporte na Ribeira da Silveira provocou inundações e estragos que rondaram os 9,2 milhões de euros naquela freguesia.
Contudo opina: “Temos procurado aumentar o número de bacias de retenção, nomeadamente, naquelas zonas que apresentam no fundo riscos de inundação vinda do Tejo. Tivemos uma intervenção importante na bacia de retenção na zona do Centro de Estágio do Futebol Clube de Alverca que veio ajudar a resolver o problema da zona baixa da cidade de Alverca, ou a criação de uma grande bacia de retenção na zona da plataforma logística Lisboa Norte, na Castanheira do Ribatejo, e que também veio resolver problemas ligados a essa natureza”.