Dias depois da instalação dos órgãos autárquicos em Azambuja, o caso de Inês Louro continuou a marcar a agenda política de Azambuja. A ex-candidata, eleita vereadora, apresentou uma renúncia por escrito e, horas depois, pediu a retratação desse ato. O executivo invocou entendimento jurídico para não lhe conferir posse imediata. Pelo meio, entram diferentes leituras da lei das autarquias locais e novos desenvolvimentos: um parecer remetido por instâncias partidárias, uma leitura da Comissão Nacional de Eleições (CNE) que a eleita diz ter recebido por e-mail, e a informação de que o processo seguiu para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa Sul, segundo a própria. Em entrevista ao Valor Local, o advogado Cabanas Alves ajuda a destrinçar a letra da lei e os pontos de fricção que o caso expõe.
O que diz a lei e onde começa a controvérsia
A lei 169/99 (atual regime jurídico dos órgãos autárquicos, com alterações) admite que um eleito local possa renunciar ao mandato antes ou depois da instalação do órgão, desde que o faça por escrito e dirigido ao órgão competente. Uma vez recebida a comunicação, deve ser convocado o substituto, operando a substituição nos termos habituais. Este é o quadro de base que nenhum dos intervenientes contesta. A controvérsia nasce de três perguntas: a comunicação de renúncia foi “expressa e inequívoca”? a retratação é possível antes de o órgão estar instalado e/ou antes de o substituto tomar posse? e, por fim, o momento em que a renúncia foi apresentada interfere com a sua validade?

A leitura do especialista
Cabanas Alves, advogado ouvido pelo Valor Local, separa o político do jurídico e centra-se no texto legal. Diz que, “sendo a renúncia apresentada por escrito, de forma clara e dirigida ao órgão competente, o efeito jurídico opera” — isto é, a renúncia produz efeitos — e que, em última instância, “num contencioso eleitoral, a Câmara terá razão se a comunicação tiver sido expressa e inequívoca”. O jurista admite que, estando o órgão por instalar, “a Câmara poderia ter avaliado a retratação”, mas sublinha que a chave está no conteúdo concreto do escrito inicial: se não for inequívoco, abre-se margem para discussão; se for, responsabiliza quem o subscreveu. “Os eleitos têm de ser responsáveis pelas comunicações que dirigem. Não podem hoje dizer A e amanhã B, deixando o órgão dependente de vontades”, sintetiza. O jurista explica que só é aplicável o artigo 76 e não o 79 da Lei das Autarquias Locais.

O argumento da eleita: “Renunciei quando ainda não era vereadora”
Inês Louro sustenta que a renúncia que enviou no próprio dia 13 de outubro não produziria efeitos porque, àquela hora, “ainda não havia apuramento geral dos resultados” e, portanto, “ainda não era nada” em termos formais — pelo que o ato seria inválido. Diz apoiar-se num entendimento remetido pela CNE que qualifica a renúncia como ato unilateral, mas que também relembra que só faz sentido renunciar a um cargo depois de juridicamente constituído (o que, na leitura invocada, acontece após o apuramento geral e não apenas com os resultados da noite eleitoral). Com base nisso, pediu para tomar posse e avisou a autarquia de que a Procuradoria-Geral da República remeteu o caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal, solicitando celeridade por temer que decisões entretanto tomadas possam vir a ser anuladas, caso o tribunal lhe dê razão.
O parecer remetido pelo Chega
Paralelamente, deu entrada um parecer subscrito no âmbito da estrutura distrital do Chega, através do seu conselho de jurisdição, que lembra ser a renúncia um direito do eleito “exercido mediante manifestação escrita” e que o presidente do órgão, recebendo a comunicação, “deve convocar de imediato o substituto” para instalação na reunião seguinte. O documento acrescenta uma leitura polémica: não tendo sido dada posse ao substituto, a renúncia “não teria produzido” ainda efeitos plenos — uma tese que, se acolhida, abriria espaço para a retratação sem consequências. Esta posição confronta-se com a leitura mais estrita defendida por Cabanas Alves: para o especialista, se o texto inicial for claro e inequívoco, os efeitos operam pelo mero envio e receção da comunicação, não dependendo de a substituição se consumar.

O papel da Câmara e a referência a pareceres externos
Segundo o que tem sido possível apurar, o executivo terá invocado orientações jurídicas, incluindo informação remetida pela CCDR, para sustentar a decisão de não conferir posse imediata a Inês Louro e de convocar a número dois da lista. Cabanas Alves qualifica como “estranho” o facto de não ter sido desencadeado de imediato o procedimento de substituição aquando da primeira comunicação, já que é isso que resulta do artigo 76.º; ainda assim, ressalva que, estando a instalação em curso, o órgão tem algum espaço para apreciar a retratação — espaço esse que diminui substancialmente se a renúncia inicial não deixar dúvidas.
O que acontece a seguir
Com a informação — transmitida pela própria — de que o processo seguiu para o Tribunal Administrativo e Fiscal, o caso pode ganhar um compasso de espera. A eleita sustenta que o caráter urgente foi sinalizado e que uma decisão tardia pode arrastar incerteza e litígio sobre atos do executivo entretanto praticados. Do lado do direito estrito, Cabanas Alves volta ao ponto de partida: “Se a primeira comunicação é expressa e clara na renúncia, a probabilidade de a autarquia ver confirmada a sua posição é elevada; se houver ambiguidade, a equação muda”.

O que está verdadeiramente em causa
Para lá do desfecho individual, o caso expõe um vazio de prática (não tanto de lei): Em que condições concretas uma retratação pode ser acolhida sem ferir direitos de terceiros? O momento formal do apuramento geral releva para a validade do ato de renúncia emitido horas antes? E qual o ponto exato em que um e-mail de renúncia deixa de poder ser “corrigido” por um segundo e-mail de retratação? A lei não desenha prazos nem rituais para mudar de posição; exige, isso sim, clareza e responsabilidade no primeiro ato. É também por isso que as leituras podem divergir.
Impacto político e necessidade de clarificação
O caso tem impacto imediato no funcionamento do executivo e repercussões na opinião pública local. Mostra como, em momentos de transição, a gestão de atos formais pode ganhar uma dimensão política que a lei não resolve sozinha. Independentemente do desfecho, fica a ideia de que as autarquias e os eleitos beneficiariam de orientações operativas mais claras sobre renúncias e retratações antes da instalação dos órgãos — não para substituir a lei, mas para reduzir margens de conflito e proteger a confiança dos munícipes. Ana Sofia Pires ocupa agora o lugar deixado vago por Inês Louro na vereação socialista. Ao que o Valor Local apurou junto de fontes do Chega locais, o desempenho da nova vereadora está a deixar a desejar, face à passividade que demonstrou na primeira reunião do município em comparação com aquela que era a conduta mais aguerrida de Inês Louro.
O que dizem, em síntese, as três posições jurídicas em confronto
- Posição legalista estrita (Cabanas Alves): se a renúncia inicial foi expressa e inequívoca e dirigida ao órgão competente, produz efeitos com a sua receção. A retratação só poderia ser atendida se o primeiro ato não fosse claro ou se, antes da instalação, o órgão entendesse aceitá-la, assumindo o risco de reação do substituto.
- Posição invocada por Inês Louro: a renúncia feita antes do apuramento geral é inválida; por isso, deve tomar posse. Sinaliza ainda a remessa do caso para o Tribunal Administrativo e Fiscal e o risco de atos anuláveis se lhe for dada razão.
- Posição constante do parecer remetido via estrutura distrital do Chega: sendo a renúncia um direito do eleito, os seus efeitos práticos dependem da subsequente convocação e instalação do substituto; não consumado esse passo, a renúncia não teria ainda produzido efeitos, admitindo-se a retratação sem dano.








