Faleceu uma das figuras incontornáveis da vila de Alenquer. O pintor João Mário morreu hoje aos 92 anos de idade. Com um museu na Vila Presépio dedicado à sua obra , o artista era também um dinamizador cultural no município. Organizava já há muitos anos os “Encontros numa Tarde de Domingo”. A sua casa museu é um dos espaços mais visitados no concelho de Alenquer pelo acervo de obras que contempla.
João Mário foi também presidente da Câmara de Alenquer durante os anos do Estado Novo, sendo aliás um dos mais jovens, à época, naquela função. Aquando das cheias de 1967 estava à frente dos destinos do município. O Valor Local assinalou em 2017 os 50 anos da tragédia das cheias. João Mário recebeu-nos na sua casa museu e deu a conhecer as histórias daqueles dias fatídicos para o concelho.
Até ao momento ainda não são conhecidos mais pormenores sobre o funeral de João Mário.
Assista ao vídeo com João Mário. Abaixo um texto sobre o pintor publicado pelo nosso jornal numa das edições de 2016
João Mário, pintor naturalista
Uma história de vida que cabe dentro de um museu
“Em pequeno nunca fui um aluno de sucesso porque só pensava em fazer desenhos e bonecos”. É assim que começa a história de João Mário, um dos principais nomes portugueses da pintura naturalista. Podia ser a história de apenas mais uma criança que nasce com jeito para desenhar, mas o alenquerense “nascido em Lisboa por mero acaso”; como gosta de frisar, acabou por ir mais longe. Nas décadas de 50 e 60, o naturalismo atingiu o seu apogeu, e o glamour das exposições frequentadas por quem tinha posses na altura, permitiam-lhe viver tranquilamente da arte, algo que hoje é impossível para qualquer artista.
O seu mestre foi Álvaro Duarte Almeida a quem recorreu depois de uma incursão pela Sociedade Nacional de Belas Artes onde o desenho de nus e de naturezas mortas não o seduziu. Com o seu mestre pode exercitar a sua veia artística na plenitude, e lembra-se de pintar a cidade de Lisboa e as suas paisagens ainda na zona do aeroporto “mas quando aquilo era tudo mato”. “Devo tudo ao meu mestre, que depois também veio viver para Alenquer com a família. Aqui passámos a receber os alunos vindos de Lisboa”, recorda-se.
Os tempos de hoje contrastam em absoluto com os de antigamente quanto à venda de quadros. A sua primeira exposição foi em 1954, e basicamente expunha duas vezes por ano nas principais cidades do país. “Quando abria as exposições, os quadros já estavam todos vendidos, mas hoje nem pensar nisso”. João Mário é um dos principais nomes da corrente naturalista, e nas décadas de 50 e 60 as suas obras “alcançaram uma cotação muito elevada, isto sem prosápia nenhuma”.
Os tempos de ouro já lá vão, e embora continue a viver da arte e do seu museu, João Mário traça um cenário negro para o mercado de venda de obras de arte no que à pintura diz respeito: “Hoje, não se vende quadros de espécie nenhuma, e por outro lado as pessoas nem sequer vão às exposições, se porventura aparecem já esfregamos as mãos de contentes, até porque, atualmente, frequentar espaços de arte é sinónimo de snobismo, de que se está bem na vida, e que determinado indivíduo tem dinheiro, e há quem procure fugir desse estereótipo”, descreve, e vai mais longe: “Quando se fala que determinado espaço é muito frequentado não é mais do que fogo-de-vista”.
Por ser um dos rostos (e talvez o mais importante atualmente) do naturalismo, João Mário não hesita em referir que este género de pintura mais popular sempre foi vista como menor pelos críticos e por outras correntes de pintura. “Há o receio de dizer bem de quem tem sucesso como Salvador Dali ou Picasso que foram figuras notáveis, e é muito difícil quebrar-se essa barreira”. Os abstracionistas “normalmente têm sempre os críticos do lado deles”. Para João Mário, não deveria existir gavetas até porque e como dizia o seu amigo José Hermano Saraiva “existe a arte que fica para toda a vida e a que passa”.
As paisagens são a sua predileção, mas a vila de Alenquer é a grande inspiração de João Mário, por ser “extremamente pictórica”, e onde até à data já deverá ter feito “mais de 200 ou 300 quadros” na parte mais antiga. “É algo inacreditável, mas no mesmo metro quadrado consegue-se pintar seis quadros diferentes”. A fama de Alenquer já ultrapassou fronteiras, e muitos pintores espanhóis colegas de João Mário têm vindo experimentar as possibilidades da Vila Presépio.
A última exposição de João Mário deu-se em finais do ano passado, mas já não expunha há três anos, dedicando-se em exclusivo à sua Casa Museu com cerca de 800 quadros e aos vários cargos que ocupa em associações locais e na Misericórdia de Alenquer onde é provedor.
O pintor confessa que conseguiu vender 12 quadros, mas sem baixar preços, “ao contrário do que fazem alguns colegas, que baixaram o valor monetário das suas obras para mais de metade, ora isso desvaloriza completamente o quadro”.
As profissões artísticas sofrem em grande parte do sintoma das ditas borlas, e a pintura não é exceção. A crise terá também agudizado esta questão, e João Mário lamenta: “Quando se pede uma borla, mas ontem até se vendeu quatro ou cinco quadros e amanhã vendemos mais uns, não tem problema nenhum fazer algo de graça, caso contrário é muito difícil, até porque as pessoas precisam de comer”. E vai mais longe: “Conheço colegas que estão muito mal, que pensaram no suicídio.” Sendo de uma geração mais velha de artistas, João Mário ilustra que “há os pintores que um dia venderam muito, e que hoje já não conseguem, mas que conseguiram adaptar o seu estilo de vida; os que exerciam outras profissões e têm a sua reforma, e depois temos esses casos críticos”.
Para além das artes, João Mário teve também uma passagem pela Câmara de Alenquer nos finais da ditadura, mas não se considera político, e até se lembra de um diálogo com um ministro de Marcelo Caetano que queria que se candidatasse a outra Câmara, e que se não o fizesse quando chegasse a Alenquer já não era presidente, mas João Mário não se intimidou. Só saiu da autarquia com o 25 de abril, mas diz que não guarda mágoas do seu saneamento. Os anos passaram e voltaram a convidá-lo, inclusive o PCP de Alenquer mas recusou. “Achei um disparate”, ilustra rindo-se perante o inusitado.
500 visitas por mês à Casa Museu
O espaço está de portas abertas há 26 anos e nele encontra-se reunido um vasto espólio com algumas das obras mais importantes de alguns pintores portugueses e também estrangeiros, como Malhoa ou Silva Porto. À volta de 500 pessoas visitam todos os meses o espaço, talvez o único museu privado de pintura figurativa na Península Ibérica desta dimensão. No ano passado, a Câmara que assume parte das despesas com o museu diminuiu as verbas a atribuir, contudo João Mário desdramatiza conformado, e com a sua bonomia característica: “A Câmara não tem vintém, não levo a mal, aliás sou amigo deles todos”.
O museu João Mário tem conhecido histórias de pessoas que por ali passaram e que apresentam um cariz quase cinematográfico como a de um menino sobredotado, o Rui, da Amadora, que um dia em excursão de tão maravilhado que ficou com o museu, que prometeu que um dia voltaria a Alenquer para agradecer os momentos proporcionados com uma prenda. “Três anos mais tarde entrou por aqui adentro e deu-me um pequeno dinossauro de plástico. Era o brinquedo mais importante para ele”, conta, referindo que mais tarde foi à Amadora à sua procura, “mas tinha ido para Bragança com a mãe”. Há também a história da menina espanhola que lhe pediu para o mestre lhe dar a mão na visita à exposição e depois escreveu no livro de visitas: “que eu para a idade estava um gajo porreiro”, ri-se.