O Tribunal Central Administrativo Sul acaba de confirmar, em acórdão datado de setembro, a providência cautelar que obriga a empresa Santos e Vale a reduzir drasticamente o tráfego de pesados que diariamente atravessa Passinha, Casais Novos e Casal Machado, no concelho de Alenquer. O processo, que o Valor Local tem acompanhado desde 2020, expõe de forma exemplar o conflito entre a expansão logística e o direito ao sossego de quem vive junto ao Carregado.
O centro logístico da Santos e Vale foi licenciado em 2016 com base num estudo que previa apenas 20 veículos pesados diurnos e 6 a 7 noturnos. A realidade é outra: mais de 200 camiões passam em 24 horas pelas ruas do Batalheiro, das Camélias e Avenida da Juventude, segundo os moradores e confirmado na decisão judicial. O ruído é de tal ordem que “impede o repouso e provoca danos materiais nas habitações”, lê-se no acórdão. Há relatos de janelas a tremer, privação de sono, necessidade de medicação e riscos para a segurança de quem circula a pé.
O tribunal sublinha que a empresa tinha “obrigação de saber” que a sua atividade lesaria direitos fundamentais. “É exigível que a sociedade harmonize o seu direito à iniciativa económica com os direitos de personalidade dos residentes”, reforça a decisão, impondo a interdição de tráfego noturno e um máximo diário de 20 pesados, bem como a obrigação de fiscalização regular por parte da Câmara.
Argumentos económicos não convenceram
A Santos e Vale alegou risco para centenas de empregos e faturação anual acima dos 10 milhões de euros, pedindo que o recurso tivesse efeito suspensivo. Mas não contestou os factos nem o estudo de tráfego que ela própria apresentou. O tribunal foi claro: “onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir”, lembrando que o direito à iniciativa privada não pode esmagar o direito ao descanso, à saúde e à segurança.
Câmara de Alenquer sob pressão
A autarquia, embora notificada, não apresentou contra-alegações, facto sublinhado pelos juízes. E, apesar de prometer desde 2021 uma “circular verde nordeste” que afaste o tráfego pesado dos bairros, a solução apenas agora começa a tomar corpo no terreno.
Para os moradores, esta omissão agrava um sentimento de abandono. “A Câmara tem de sair da inércia e impor regras claras”, exigem, lembrando que o município se comprometeu a fiscalizar os limites de tráfego logo em 2020, sem que isso tenha travado o problema.
Mais do que um conflito local
O caso expõe dilemas cada vez mais frequentes nas zonas logísticas da região de Lisboa: crescimento económico acelerado versus qualidade de vida. A plataforma do Carregado é estratégica para a distribuição nacional, mas o tribunal sublinha que “a economia não é argumento para ignorar direitos básicos”.
Com esta decisão, a Santos e Vale é obrigada a reorganizar a operação, e a Câmara de Alenquer fica vinculada a controlar o cumprimento das restrições e a acelerar a via alternativa. Os moradores, por sua vez, ganham novo fôlego na defesa do sossego e da saúde, após anos de noites interrompidas pelo ruído dos camiões. Em marcha estão pedidos de indeminização dos moradores à empresa, segundo apurámos.