A tradicional corrida noturna de terça-feira em Vila Franca de Xira continua a afirmar-se como um dos momentos altos do calendário tauromáquico nacional. Com a Palha Blanco bem composta de público e envolta num ambiente carregado de expectativa, sentiu-se o peso da responsabilidade em cada saída à arena. Aqui, a exigente e apaixonada afición vilafranquense não facilita, mas também não falha.
O curro de Canas Vigouroux, de pelagem jabonera e apresentação irrepreensível, revelou-se de comportamento variado, condicionando de forma clara o desenrolar das lides. Houve exemplares com nobreza, entrega e transmissão, enquanto outros se mostraram reservados, distraídos ou carentes de raça. Destacou-se, com evidência, o segundo toiro, lidado por Miguel Moura no primeiro tércio, que reuniu classe, codícia e bravura, mostrando-se um toiro completo, digno do seu ferro, e merecendo com justiça a volta à arena da ganadera, num gesto de reconhecimento que enalteceu o valor do animal. O restante curro, porém, pecou pela desigualdade, com algumas unidades a revelar falta de entrega, exigindo dos cavaleiros maior leitura e sensibilidade. Essa capacidade de adaptação, no entanto, não se verificou plenamente, e as lides mantiveram-se num registo demasiado uniforme, sem que se tirasse partido da singularidade de cada toiro, o que acabou por privar o espetáculo da variedade e da riqueza que a tauromaquia, na sua essência, exige e merece.

João Ribeiro Telles enfrentou dois exemplares de escassa transmissão, que condicionaram seriamente as possibilidades de ligação e expressão na arena. As duas actuações, demasiado semelhantes entre si, ficaram aquém do que o cavaleiro habitualmente nos tem brindado, especialmente tendo em conta o seu valor e capacidade reconhecidos. Esperava-se uma lide mais contundente, capaz de superar as dificuldades impostas pelos toiros e de imprimir aquele querer que já demonstrou em anteriores temporadas. Infelizmente, nesta ocasião, Telles manteve-se preso a um conceito sem a flexibilidade e ousadia necessárias para fazer vibrar o público e conquistar o verdadeiro fulgor da noite.
Miguel Moura destacou-se no primeiro terço, diante do melhor toiro da noite. Com temple, entrega e um sentido estético apurado, construiu uma faena de grande nível, rematando com precisão e arte, que mereceu a justa volta à arena, acompanhada pela ganadera. Na segunda actuação, perante um lote menos colaborante, prevaleceu um toureio mais adornado e menos estruturado, sem a profundidade e impacto da lide inaugural.
João Salgueiro da Costa, apesar da entrega e da garra evidenciada perante um lote difícil e desigual, marcado por um primeiro toiro discreto e uma aparatosa colhida na segunda lide, revelou uma certa rigidez conceptual e falta de variação que o impediram de alcançar os triunfos necessários para galvanizar o público. Mesmo com o esforço e dignidade evidenciados no seu regresso à arena, faltou-lhe aquele fulgor artístico capaz de comover verdadeiramente os tendidos e despertar a emoção genuína que distingue as grandes noites de toiros.

A nota mais alta da noite pertenceu, sem sombra de dúvida, ao Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira, que mais uma vez reafirmou o seu prestígio e estatuto na arena nacional.
Uma das pegas mais arrepiantes e memoráveis da corrida é da temporada foi, sem dúvida, a que Miguel Faria rubricou na abertura da função, uma pega carregada de verdade, decisão e pureza, que honrou o nome da jaqueta e levantou os tendidos em aplauso unânime. Seguiram-se pegas de elevado quilate, protagonizadas por Vasco Carvalho, Rodrigo Caminho, Rodrigo Andrade e André Câncio, todos com enorme entrega e sentido de compromisso. O cabo Vasco Pereira, com saber, raça e valentia, consumou à terceira tentativa uma pega duríssima, dobrando Guilherme Dotti, que havia sofrido uma lesão no intento anterior. O próprio Vasco sairia também lesionado após a consumação, num gesto que enaltece ainda mais a sua coragem e liderança.
Merecem igualmente referência o labor eficaz e determinado do rabejador Rafael Leonardo, que deu continuidade ao legado de Carlos Silva, o emblemático “rabejador de ouro”, já retirado da actividade, mas que agora vê o seu antigo lugar muito bem entregue.
Apesar das naturais agruras da noite, com tentativas não consumadas e vários forcados obrigados a recolher à enfermaria , o Grupo voltou a mostrar, com galhardia e alma, a sua identidade firme, a coesão forjada em muitas tardes e noites de glória. Foi, sem margem para dúvidas, mais uma noite de afirmação plena dos Amadores de Vila Franca, que voltaram a vestir a jaqueta com honra, orgulho e emoção, elevando bem alto o nome da sua terra e da sua tradição.