À filósofa alemã de origem judaica, Hannah Arendt é atribuída a seguinte expressão:«vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores a esperança». A frase pode, em parte, caracterizar a natureza do tempo que tem vingado à nossa volta.
É estranho poder considerar isso, quando são muitos os «mix feelings», que nos acercam quanto aos muitos desfechos que o estado do Mundo, da Europa e do País encerra. Pairam no ar incertezas quanto ao desenlace das situações mais prementes que marcam a agenda política internacional, angústias quanto à forma como os «major players» europeus irão marcar posição e defender os interesses do Velho Continente.
No quadro nacional, iremos superar com êxito o estado de ansiedade em que, por teimosia táctica e incapacidade de negociação e de diálogo, o Governo, o Primeiro-Ministro e as Bancadas Parlamentares (PSD e CDS) que suportam a coligação governamental convidaram o País a vivenciar?
Por outras palavras, são tempos ímpares, de muitos receios, de profundas apreensões e de expectativas contrastantes.
Apesar de tudo isso, convém reflectir, um pouco mais, sobre o momento de acrimónia que atravessamos no País.
A apresentação da moção de confiança ao Governo podia ter sido evitada e continuaríamos a ter a estabilidade política suficiente para o funcionamento regular das instituições, para a manutenção dinâmica da economia, contribuindo, de certa forma, também, para um mínimo de paz social.
O que incomoda, o que perturba e o que vai dando sinais, é que a maturidade democrática da República parece estar em retrocesso. Aonde está o adulto na sala?! Porém, nunca é demais, sublinhar que quando surgem impasses e os mecanismos formais da Democracia e da Constituição da República não conseguem, a estes, dar resposta, deve-se devolver, através do voto e da ida às urnas, a possibilidade da vontade popular ser expressa.
Contudo, como sabemos as regras da ordem democrática e constitucional não devem ser usadas para o florescer do incerto, assim como, as limitações destas e o uso doloso das mesmas não podem ser um convite, por um lado, à «mecânica da inércia» e, por outro, à «engenharia do caos».
Na minha opinião, podemos estar a dar lugar à erosão dos processos democráticos, à percepção enviesada de que uma «democracia directa permanente» ou constantes exercícios de «cultura proto-refendária» são a melhor panaceia para as imperfeições do nosso sistema democrático.
Não são, de facto, «remédio santo», nem mesmo o melhor «suplemento de legitimidade» para a democracia representativa, pois no médio-longo prazo, irão continuar a contribuir para a interpretação de que o quadro de princípios e valores democráticos em que vivemos se vai transformando numa espécie de «anarquia moderada».
Disto isto, não há mal algum num processo eleitoral antecipado em virtude da rejeição de uma moção de confiança à acção do Governo no Parlamento.
O que pode parecer, sim, extemporâneo, insólito e desadequado é voltar-se a convocar eleições, exactamente, um ano depois da última vez que o fizéramos; a qual, por sua vez, realizou-se, dois anos depois de, em Janeiro de 2022, termos sido chamados a votar, quando, dois anos antes – em Outubro de 2019 – e ao fim, de uma legislatura completa, de 4 anos, já o havíamos feito. Desde 2019, nos últimos 6 anos – excluindo Eleições Europeias, Autárquicas e Presidenciais – fomos convocados três vezes para eleger os nossos Deputados ao Parlamento.
Seria preferível uma paz podre, a uma guerra justa?
Esta é uma questão de resposta difícil, diria mesmo, não para amenizar o raciocínio, de resposta múltipla, tendo em conta, o escopo partidário e o ponto de vista político-ideológico, onde possamos estar.
Arrisco afirmar que o Governo, a coligação que o suporta na Assembleia da República e o Primeiro Ministro no «masterplan» que conceberam para debelar a situação, em que este último os envolvera, não contaram com todas as variáveis – talvez, por imprudência ou ingenuidade? – e resolveram fazer uma derradeira jogada de tudo ou nada. Importa recordar, que depois de terem o Orçamento aprovado, através da abstenção, pelo principal partido da oposição (PS), de este ter contribuído para o chumbo das moções de censura apresentadas pela Ultra Direita (CH) e pela Esquerda Conservadora (PCP), sabendo, igualmente, que o Partido Socialista já havia afirmado que não votaria nenhuma moção de confiança, o Governo insistiu em apresentá-la.
Fizeram-no, convencidos de que esta seria uma «bala de prata», que no contexto parlamentar existente, seria tão fatal para as oposições, como revitalizadora para o Executivo? Nada mais errado, ou seja, foi o mundo ao contrário, e o feitiço, por ora, virou-se contra o feiticeiro!
Sabemos que a ideia era inviabilizar a constituição potestativa de uma CPI para averiguar do cumprimento das regras aplicáveis ao exercício do respectivo mandato do Primeiro Ministro.
Toda a peripécia parlamentar com os golpes de teatro, as fugas regimentais, às quais se somavam as toadas retóricas para as justificar contribuíram para o descrédito do Governo, da Assembleia da República, da actividade dos Deputados, assim como, para a desqualificação do debate político.
À cabeça, o Governo não se portou bem, sempre em modo bélico, agarrado à «solução maquiavélica» de um problema pessoal do PM, que se tornara, por falta de explicações plausíveis do próprio, num problema político para os partidos que sustentam a coligação governamental.
Apesar disso, o Presidente da República e as oposições não fizeram tudo para evitar esta nova crise política. É do conhecimento geral que quem habita as regiões extremófilas do espectro politico-partidário não tem interesse nenhum na estabilidade do País e das instituições. Não tem apreço pela negociação, pelo compromisso e pelo acordo, pois considera a arena parlamentar, mais como uma câmara de eco da gritaria, do disparate e do insulto do que o espaço privilegiado para o debate sério e elevado.
O Presidente da República podia ter articulado, usando a sua magistratura de influência, uma solução, que salvaguarda-se os interesses do País e a credibilidade das instituições da Democracia e não trouxesse para o espaço público as falhas narcísicas do Primeiro Ministro e as manifestações egóicas das oposições.
Em boa verdade, o tacticismo ardiloso do Governo resultou na confirmação de que tudo o que tinham planeado podia correr mal. Mais ainda, foi, igualmente, a assunção da Lei de Murphy, um adágio que refere que quando tudo pode correr mal, mesmo na possibilidade mais remota de tal acontecer, essa situação terá lugar!
Não podia ser de outra forma, tendo em conta o impasse em que o Governo se colocou, aquando do debate sobre a moção de confiança.
As sondagens e os estudos de opinião das últimas semanas revelam, também, que a imagem positiva que o Primeiro Ministro vinha tendo desde Março do ano passado, junto da opinião pública, tem sofrido um desgaste, afectando assim as projecções e as intenções de voto para o acto eleitoral de Maio próximo. Há uma ligeira subida do PS, aparentemente promissora, face à AD e uma descida significativa da Ultra-Direita (CH).
E é aí, que está o busílis da questão! A campanha eleitoral, ainda se encontra no início, e tudo indica que, apesar das oscilações, o cenário político, depois de 18 de Maio, não será muito diferente do actual.
Continuará a ser inconclusivo quanto ao surgimento de maiorias claras no Parlamento ou, de possíveis acordos de incidência parlamentar, que permitam a qualquer Governo que daí advenha governar. Surgirá, deste modo, um novo impasse?
Chegados aqui, voltamos ao início da nossa reflexão, poderão os que se alimentam do medo construir o seu ninho sobre a falta de esperança? Nesse sentido, será a Ultra-Direita a fazer caminho, acelerando o passo, ao aproveitar-se das faltas do sistema, ao mesmo tempo que disfarça os «pés de barro» que tem e esconde os «esqueletos no armário».
Termino, convidando-vos, a reflectir, igualmente, sobre o que Günther Anders, filósofo alemão, também ele, de origem judaica convencionou chamar de Sindrome de Nagasaki, um conjunto de sinais e sintomas, que sugerem que o que foi feito, uma vez, pode ser repetido outras vezes, com reservas cada vez menores, a cada novo caso, de modo mais trivial, banal e aceitável, com pouca ponderação ou atitude reflectida. A repetição do ultraje não só é possível, como provável – enquanto a hipótese de superar essa situação desagradável, de vencer essa batalha diminui, e a de perdê-la aumenta!
Assim sendo, estejamos muito atentos e vigilantes quando ao que desta nova contenda eleitoral poderá surgir.